por Marília Franco
O crescimento exponencial da produção audiovisual no mundo contemporâneo exige que se implemente uma mudança no perfil da cultura e das práticas de preservação dessa produção.
É urgente que se constitua e se fomente uma CULTURA DE PRESERVAÇÃO no meio audiovisual brasileiro e latino-americano.
O CPCB – Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro vem se pautando, já há algum tempo pela idéia de que A PRESERVAÇÅO COMEÇA NA PRODUÇÃO.
Isso quer dizer que se torna indispensável que o realizador e seu produtor vejam-se como os primeiros preservadores das obras que estão produzindo, considerando que para o realizador a obra preservada é o único registro indiscutível de seu direito autoral assim como para o produtor é a garantia patrimonial de seu investimento e propriedade.
Essa observação ganha especial importância no momento em que as leis de direitos tendem a distinguir esses dois pontos como diferentes, embora conexos, e especializam esses termos em documentos legais e pareceres jurídicos.
Nesse sentido, ainda, as experiências de obras restauradas e relançadas tem mostrado uma sobrevida de ganhos para autores e produtores que ultrapassam as melhores previsões.
Quando tentamos, no entanto, alcançar o que se abriga sob esse termo – preservação audiovisual – encontramos uma grande cadeia de conceitos, políticas e ações que se espalham por muitos campos pessoais e profissionais e envolvem uma grande quantidade de especialidades focadas sobre eles.
A partir dessas considerações apresentamos um primeiro sobrevôo sobre a cadeia de prospecção, guarda, preservação e restauro, propondo uma divisão em etapas e áreas. Aplicável a qualquer produção/suporte de material audiovisual – passados, presentes e futuros.
Preservar é
oferecer condições de perenização de obra cultural
na sua materialidade, integridade e integralidade física,
bem como suas documentações conexas,
para fins de difusão, pesquisa, estudos e fruição.
Comecemos, pois a ver:
O que preservar:
I) A obra material em sua versão original e integral (suporte imagem e som) + cópias em outros suportes, feitas a época da finalização/lançamento.
II) Documentos de criação: pesquisas, roteiros e versões, projetos visuais, projetos sonoros, projetos tecnológicos, documentos de ensaios, fotos de cena, making offs, projetos de edição, projetos de finalização.
III) Documentos de produção: planos de produção, projetos técnicos visuais realizados, projetos técnicos sonoros realizados, projetos tecnológicos especiais, documentação de elenco e de técnicos (contratos+nomes civis), financiamentos, orçamentos, prêmios de editais, documentos de finalização.
IV) Documentos de difusão: sites, releases, cartazes, teasers, trailers, fotos de cena e de publicidade, participação em festivais e mostras, premiações. Lançamentos em DVD, blue-ray, streaming, sites de exibição AV.
V) Documentos de recepção: lançamento, matérias, críticas, debates ,twits, entrevistas, outros. Reflexões, pesquisas, influências culturais.
VI) Documentos conexos: trilhas sonoras lançadas, camisetas e afins, produtos referentes (moda, games, gadgets), fã-clubes, twitters, outros.
Sabemos que, para a preservação, as obras audiovisuais, mesmo antes do “trem chegar à estação”, tem data de início, mas não tem data de finalização. Sendo, pois, uma atividade permanente, complexa e em constante mutação para adaptar-se aos novos formatos midiáticos e às novas técnicas de conservação, uma grande quantidade de profissionais e instituições, públicas e privadas, devem se dedicar a essas tarefas.
Sugerimos aqui alguns:
Níveis de atuação:
a) Preservação primária – apenas guarda, sem tratamento documental ou de preservação técnica.
1) Primeiros preservadores – os autores/produtores/distribuidores (detentores de eventuais direitos autorais e patrimoniais)
2) Depositários primários: autor, produtor, família, empresa.
3) Prospectores – pesquisadores acadêmicos ou outros.
4) Colecionadores
Neste grupo temos responsabilidades que podemos qualificar como o primeiro elo na constituição dessa cadeia de ações que definirá as condições de vida cultural útil do produto audiovisual. Neste grupo encontramos quase apenas pessoas físicas que só terão a verdadeira dimensão de suas ações de preservadores se estiverem formados dentro de uma cultura de preservação, que é exatamente a que queremos construir com a difusão das idéias contidas neste texto.
Políticas e instituições
Deste ponto em diante já entramos no âmbito de políticas e ações institucionais. Entendemos que os primeiros pilares institucionais devem estar fincados nos municipios, em seus centros de memória e museus locais, bem como na atenção a formação de profissionais que possam, localmente cuidar dos primeiros passos da documentação, preservação e difusão do patrimônio da cultura desenvolvida na região.
É desejável, no entanto, que haja articulação dessas ações locais com políticas culturais estaduais tanto através de legislações específicas de estimulo aos atos de preservação e difusão, quanto a adoção de projetos e políticas que reunam necessidades mais complexas que possam ser desenvolvidas para atender demandas técnicas menos cotidianas.
A esse ambiente chamamos de:
b) Preservação secundária – cabendo a instituição de guarda o tratamento documental, tratamento técnico básico de guarda e preservação, condições de difusão direta ou associada. (caráter regional municipal/estadual).
Por fim propomos um espaço de:
c) Preservação terciária e restauro – instituições com alta qualificação tecnológica e técnica e de recursos humanos com alta especialização. Laboratórios analógicos e digitais, espaços especializados de guarda (caráter nacional envolvendo políticas públicas de memória e patrimônio).
Num país com as dimensões e as diferenças culturais e climáticas (questão altamente relevante para a conservação de documentos audiovisuais) como o Brasil seria interessante avaliar um sistema de distribuição regional dessas instituições, pois fica evidente que uma ou duas não poderiam dar conta de preservar e formar para a preservação.
A questão da formação
A partir desse mapeamento das áreas, etapas, materiais e intervenções técnicas, legais e culturais, torna-se possível fazer uma avaliação de profissionais que podem envolver-se na área:
ü realizadores, produtores, distribuidores.
ü difusores, curadores, programadores, críticos
ü pesquisadores, professores.
ü legisladores e especialistas jurídicos.
ü técnicos de nível médio e universitário em história, física, química, eletrônica, engenharias, documentação e informação, arquivística e muitas outras especialidades.
ü gestores públicos e privados.
A partir disso como sugerir formação e especialização a toda essa gama de profissionais indispensáveis a real constituição de uma área de preservação audiovisual?
Como, antes de tudo, formar uma CULTURA DE PRESERVAÇÃO para todos esses profissionais que venham a atuar na área?
Que áreas deveriam estar presentes nos cursos de formação de profissionais para a produção audiovisual – técnica e universitária – em termos de criação de cultura de preservação e de formação para a atuação direta nas frentes de preservação?
Fica um convite à reflexão e à adesão a essa causa, que o CPCB abraçou há mais de trinta anos e cujos desafios se renovam a cada dia, precisando do apoio de todos quantos entendam a necessidade de conservamos esse patrimônio cultural brasileiro.
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Marília Franco é graduada em cinema, mestre e doutora em Artes. Professora do Curso Superior do Audiovisual da ECA/USP. Milita há mais de 20 anos na área de preservação audiovisual através do CPCB.