Arquivo para setembro, 2011

As muitas vidas de Valêncio Xavier

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 3 Comentários

por Solange Straube Stecz e Ana Pellegrini Costa 

Tomado de empréstimo do cineasta paranaense Beto Carminatti , o título deste artigo aponta para sua intenção: uma homenagem e um breve resgate da trajetória do pesquisador, homem de televisão, consultor de imagem em cinema e TV, roteirista, escritor e cineasta Valêncio Xavier (1933-2008). Valêncio Xavier transitou por várias áreas da cultura nacional e sua obra contribui para cada uma delas – o cinema, a televisão, a imprensa, as artes plásticas e a literatura. Seu legado permanecerá como exemplo de um homem impulsivo e apaixonado que soube viver cada uma de suas muitas vidas com toda intensidade.

Valêncio nasceu em São Paulo e veio para Curitiba na década de 1950. Viveu parte de sua juventude na França, onde conviveu com Marcel Duchamp, Henri Cartier-Bresson, Hans Arp e outros expoentes do dadaísmo e do surrealismo. Pioneiro da televisão brasileira, Valêncio Xavier trabalhou na TV paulista ao lado de Sílvio Santos e Jô Soares. No Paraná, ele foi o pioneiro da televisão, e os capítulos que escreveu para Histórias que a Vida Conta, teleteatro da TV Paraná, ficaram famosos. Ainda trabalhando na televisão, ele exerceu quase todas as funções disponíveis: redator produtor, diretor.. Foram mais de 20 anos em emissoras de televisão, tendo participado das primeiras transmissões da TV Paraná Canal 6, onde, ao lado de Salomão Scliar, realizou o programa de abertura da emissora, e da TV Paranaense Canal 12, sendo seu trabalho destacado nos livros de Renato Mazanek (Ao Vivo e sem Cores – O Nascimento da Televisão do Paraná), e de Jamur Jr. (Pequena História de Grandes Talentos). Xavier trabalhou na realização de filmes, vídeos e programas para a televisão até o ano 2000. Foi colaborador dos jornais Gazeta do Povo, de Curitiba, e Folha de S. Paulo.

Em plena ditadura, o pioneirismo de Valêncio Xavier deu origem à Cinemateca de Curitiba(1975). Além da exibição de filmes de fora do circuito comercial, promovia cursos livres com grandes cineastas do Brasil e do exterior, dando incentivo à formação de profissionais do cinema na cidade.

Na Cinemateca, desenvolveu e coordenou trabalhos de prospecção, restauração e pesquisas sobre o cinema paranaense. Como articulista, escreveu para as Revistas Panorama, Quem e Nicolau, Referência em Planejamento, nos anos 70, 80 e 90. Preocupado com o resgate da memória e incorporação de dados sobre o cinema paranaense, implementou um grande projeto de pesquisa, responsável pelo levantamento de dados sobre as exibições e filmagens realizadas em Curitiba de 1892 a 1930. Com ele o período mudo do cinema paranaense definitivamente ocupava seu espaço na história.

Na literatura foi reconhecido nacionalmente. Influenciado pelo cinema e pelas artes visuais, Valêncio trabalhava com colagens e multitextos montados como em um filme. Seu cinema tinha influências literárias e sua literatura era puro cinema. Com O Mez da Grippe ganhou o prêmio Jabuti (1998) de melhor produção editorial. Inspirados no livro, os cineastas paranaenses Beto Carminatti e Pedro Merege Filho filmaram em 2007 o longa-metragem Mistéryos.

“O filme de Merege e Caminatti estabelece uma interação com o formato de texto/ilustração perseguido por Xavier no livro. Recursos de animação recriam reportagens de jornais, desenhos de bestiários e figuras geométricas variadas que se conjugam para traduzir o clima de incertezas que rege o périplo existencialista de VX. O par de letras ao lado é a nomenclatura utilizada para definir o protagonista do filme, interpretado por Carlos Vereza com um vigor exemplar.”

O amor pelo cinema e a paixão pela pesquisa o aproximaram de grandes nomes da história do cinema brasileiro, como Paulo Emilio Salles Gomes, Cosme Alves Neto, José Tavares de Barros, e Alex Viany, que estão entre os fundadores do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, nos anos 60. Sua participação na entidade foi intensa, como sócio, como membro do Conselho Consultivo e como presidente (1996-1998).

Trazia para os encontros o resultado de suas pesquisas e prospecções, como a exibição, em 1976, no VI Encontro de Pesquisadores, realizado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, do então recém-recuperado Carnaval em Curitiba, filme da década de 10 de Annibal Requião, pioneiro do cinema no Paraná. No mesmo ano integrou a comissão que redigiria o anteprojeto de estatuto do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, ao lado de Luiz Gonzaga Teixeira, Maria Rita Galvão e Cosme Alves Neto. Em 1987, novamente participou do grupo que propôs nova reforma estatutária, tornando a entidade mais ágil e referendando a instalação de núcleos regionais, aliás uma de suas prioridades para o CPCB.

Uma Mostra Nacional de Filmes Recuperados foi o mote para discutir em Curitiba o estágio da pesquisa no Paraná. Em dezembro de 1984, nos dias 14 e 15, Valêncio realizou a mostra, onde foram lançados o Boletim número 9 do CPCB e o número 1 dos Cadernos de Pesquisa. Durante dois dias foram exibidos filmes recuperados, discutidos aspectos da pesquisa de cinema e a criação do núcleo regional do CPCB, integrado por Clara Satiko Kano, Celina Alvetti e coordenado por Solange Stecz. Do evento participaram também Fausto Fleury, representando a Embrafilme, Sylvio Back, Francisco Alves dos Santos, Dinah Ribas Pinheiro, Malu Maranhão, Maria de Lourdes Rufalco, Berenice Mendes e Geraldo Piolli.

Em assembleia realizada no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 1996, Valêncio assumia a presidência do CPCB tendo como vice Marília Franco, secretária Solange Stecz e tesoureira Celina Alvetti. No período em que esteve à frente da entidade demonstrou entusiasmo e interesse em “resgatar o trabalho que vinha sendo realizado e dar impulso à pesquisa de cinema no Brasil”, conforme declarou no Comunicado aos Sócios de setembro de 2006. No mesmo ano, com o apoio da Coordenação de Cinema e Vídeo da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, coordenou encontro de 02 a 04 de agosto, no Centro Cultural Vergueiro, onde foi lançado o livro e CD do pesquisador gaúcho Antonio Jesus Pfeil e definida a criação dos núcleos regionais de São Paulo, coordenado por Máximo Barro; Rio de Janeiro, por Myrna Brandão; Rio Grande do Sul por Antonio Jesus Pfeil; Minas Gerais por José Tavares de Barros; e Amazônia por Selda Vale da Costa.

Durante o Encontro o pesquisador Jorge Capellaro foi declarado sócio emérito e sua pesquisa Verdades sobre o início do cinema no Brasil referendada pelo CPCB. Na pesquisa Capellaro revela que a primeira filmagem no Brasil e sua consequente exibição foi feita em maio de 1897, na cidade de Petrópolis/RJ por Vito di Mayo, antecedendo em 13 meses o registro de Afonso Segreto, até então considerado a primeira filmagem realizada no Brasil.

Ainda na sua gestão propôs a indicação de livros com a referência “Obra recomendada pelo CPCB” para publicações e materiais audiovisuais que representassem uma contribuição para a pesquisa e resgate da memória cinematográfica e que foram lançadas também no Festival de Brasília, no Encontro realizado entre 29 de outubro e 1 de novembro. Além do livro de Capellaro foram lançados com a recomendação do CPCB: Pioneiros do Cinema Brasileiro, CD Rom de Jurandyr Noronha, Coisas Nossas, CD com trilha sonora e livro de Antonio Jesus Pfeil, e os livros Cine Luz no Tempo do Cinema, de Cordovan Frederico de Melo Júnior, Cinema no Paraná, Nova Geração, de Francisco Alves dos Santos, Palácios e Poeiras – 100 Anos de Cinema no Rio de Janeiro, de Alice Gonzaga, O Fim das Coisas – Histórias dos Cinemas de Belo Horizonte, de Ataides Braga, A Primeira Sessão de Cinema em São Paulo, de Máximo Barro, e Ô psit!, O Cinema Popular dos Trapalhões, de Fatimarlei Lunardelli.

Para a abertura oficial do Encontro, Valêncio programou a sessão O Cinema antes do Cinema, com palestra de Harry Luhm e projeção em Lanterna Mágica de fotos inéditas em chapa de vidro do século XIX do fotógrafo paulista Militão Augusto de Azevedo e de seu filho Luiz Gonzaga de Azevedo, além de uma mostra de filmes familiares de Oscarito.

Valêncio Xavier afastou-se da presidência do CPCB em 1998, mas nunca deixou de participar e contribuir com a entidade.

Um pouco de história

Dentre as múltiplas tarefas de Valêncio Xavier, talvez a mais importante e fundamental para a história do cinema paranaense tenha sido a sua articulação para a fundação, em Curitiba, da Cinemateca do Museu Guido Viaro (atual Cinemateca de Curitiba). Esse espaço, inaugurado em parceria com o prefeito da capital naquela época, Saul Raiz, e em consonância com as ideias de Francisco Alves dos Santos e Jair Mendes, serviu como polo agregador de futuros realizadores do Paraná, que encontraram lá espaço para discussão, cursos, debates e produção de seus filmes.

A partir do dia 23 de abril de 1975, a Cinemateca se propôs a projetar, em uma sala de exibição para cerca de 80 pessoas, filmes alternativos, ou seja, aqueles que não encontravam espaço no circuito cinematográfico comercial/tradicional. O responsável pela escolha da programação e, consequentemente, pela logística necessária para que esses filmes chegassem até a Cinemateca, era Valêncio Xavier. Além disso, Valêncio, por meio de seus contatos em Curitiba, trouxe, para dentro do pequeno espaço cinematográfico, os equipamentos necessários para a projeção dos filmes. “Com o conhecimento que ele tinha da indústria cinematográfica brasileira daquela época (década de 1970), pela amizade com produtores, artistas, diretores e, também, com as experiências adquiridas em um longo trabalho realizado na televisão em Curitiba, primeiro no canal 6 e depois no canal 12, pode-se dizer que o Valêncio foi o grande motor da Cinemateca. Ele, praticamente, estruturou tudo sozinho”, conta Jair Mendes, que, na época da fundação da Cinemateca, exerceu o cargo de diretor administrativo da instituição.

Alguns meses depois de sua inauguração, a Cinemateca do Museu Guido Viaro já havia alcançado êxito, atraindo para seu interior grandes intelectuais paranaenses, professores, jornalistas, críticos e jovens universitários. Todas essas pessoas que por lá passaram constituíram uma organização de cerca de 500 sócios, sempre prontos a comparecer às sessões de cinema, que aconteciam de terça-feira a domingo. “O público era muito bom, todos cinéfilos de carteirinha, que saíam das sessões discutindo o que haviam visto. Nesse momento, percebendo como a Cinemateca estava crescendo, o Valêncio viu a oportunidade de oferecer cursos de cinema. Vieram para Curitiba diversos diretores muito importantes, que davam palestras e promoviam mesas-redondas”, relembra Jair Mendes. Tinha início a segunda fase da Cinemateca, com ênfase na produção. Dentro desses cursos promovidos por Valêncio, os alunos eram incentivados a realizarem filmes, cujos projetos, depois, alcançariam independência, fazendo com que muitos dos estudantes dessem seus primeiros passos como diretores de cinema. É o caso dos realizadores Elói Pires Ferreira, Berenice Mendes e dos irmãos Schumann.

Paralelamente às tarefas realizadas dentro da Cinemateca, Valêncio Xavier se dedicou a muitos outros projetos. Em 1973, publicou Desembrulhando as balas Zequinha, texto que se propõe a estudar o surgimento das Balas Zequinha, que durante quatro décadas encantaram gerações de curitibanos. Cerca de 10 anos depois, em 1981, Valêncio escreveria O Mez da Grippe, que reúne recortes de jornais antigos, anúncios, cartões-postais e ilustrações para contar a epidemia de gripe espanhola que assolou Curitiba em 1918. Entre os personagens do livro estão dois jornais, um governista que prega a normalidade e outro de oposição, mais alarmista; dona Lúcia, testemunha oral dos fatos; os burocráticos relatórios das autoridades; e um sujeito solitário que entra nas casas para fazer sexo com as moças adoentadas. Pode-se ler seguindo cada uma das vozes linearmente ou misturando-as todas, para formar contrapontos. Além disso, Valêncio faz uso da grafia arcaica da década de 1910, trabalhando com palavras como “hymnos” e “apprehensão”.

Durante os anos 90, O Mez da Grippe foi lançado junto com outros quatro textos de Valêncio, O Mistério da Prostituta Japonesa, O Minotauro, Maciste no Inferno e Mistérios. A respeito de O Mez da Grippe, quando de seu primeiro lançamento na década de 1980, Francisco Alves dos Santos escreveu no jornal Correio de Notícias: “este livro é uma tentativa, bem sucedida, de romper os limites entre a apreensão de um conteúdo pelo código verbal, a palavra, e a apreensão de um conteúdo pelo código gráfico, o desenho. Valêncio inovou a linguagem literária. Tanto críticos como professores de Comunicação louvaram o achado. Curioso observar a influência que a imagem visual, pode ser o cinema, exerce sobre a criação literária de Valêncio Xavier”.

Ainda como escritor, Valêncio Xavier lançou, em 1986, A Propósito de Figurinhas, em parceria com o ilustrador paranaense Poty Lazzarotto, e em 1994, Poty, Trilhas e Traços, uma homenagem ao amigo. Seu próximo livro seria Meu 7º dia, lançado em 1998, seguido por Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentindo, de 2001. O último livro escrito por Valêncio Xavier foi Crimes à Moda Antiga, de 2004, composto por oito contos que descrevem crimes reais acontecidos no Brasil no início do século 20. Em quase todos os casos, os delitos são cometidos por motivos quase insignificantes, sem apreço pela vida alheia. É o caso da cobiça dos ladrões em Os estranguladores da fé em Deus e Gângsteres num país tropical, do ciúme em O outro crime da mala, da honra ultrajada e do orgulho ferido em A noiva não manchada de sangue” e pela certeza da impunidade advinda da riqueza em O crime de Cravinhos. Para escrever o livro, Valêncio pesquisou casos de crimes na cidade de São Paulo, no Arquivo Oficial do Estado, e na Biblioteca Pública de Curitiba. Os desenhos que compõem o livro são baseados em recortes de jornais da época, feitos pelo sobrinho de Valêncio, Sérgio Niculitcheff.

O primeiro filme dirigido por Valêncio foi A Visita do Velho Senhor, versão cinematográfica de um conto gráfico de Poty Lazzarotto, publicado originalmente na Revista Panorama. Os desenhos do ilustrador paranaense sugerem em sua sequência, muito semelhante a um roteiro fílmico, um estranho e insólito encontro de amor. Os dois únicos personagens da película são vividos por José Maria Santos e Marlene Araújo. A direção de A Visita do Velho Senhor foi dividida com Ozualdo Candeias, cineasta paulista. Em 1979, filmaria Carta a Fellini, que venceu o prêmio de melhor ficção na Jornada de Cinema da Bahia. O filme, que tem como pretexto informar o cineasta italiano Federico Fellini sobre a cidade de Curitiba, é uma versão livre das características da vida curitibana, nos seus mais variados segmentos.

No ano seguinte, 1980, a pedido do Canal 12, sucursal da Rede Globo, onde trabalhava e era o responsável pela produção do programa Tevê Mulher/edição do Paraná, Valêncio faria O Monge da Lapa, um média-metragem refazendo a trajetória do monge João Maria e de seus seguidores, ligados à Guerra do Contestado, que se deu entre Paraná e Santa Catarina na metade do século passado. João Maria foi uma das mais veneradas figuras do Paraná, acreditado como sendo santo e milagreiro na região da Lapa, município perto de Curitiba. Há, inclusive, na Lapa um santuário natural do monge (uma gruta), para onde afluem diversas pessoas com a esperança de suavizar seus males.

Ainda em 1980 viria Poty, que busca mostrar a arte da gravura de Poty Lazzarotto. Logo após, em 1983, Valêncio dirigiria a livre adaptação do conto O Corvo, de Edgar Allan Poe, com base na tradução de Reynaldo Jardim. No início da década de 1980, ele também seria o produtor de Póstuma Cretã, documentário de Ronaldo Duque sobre o drama indígena da Reserva de Mangueirinha, no Paraná, desencadeado pela morte do líder e cacique Cretã.

A década de 1990 marca a realização de O Pão Negro – Um episódio da Colônia Cecília (1994), um documentário com elementos de ficção, baseado nos textos do anarquista Giovanni Rossi, fundador da Colônia Cecília. Os textos foram pesquisados e traduzidos por Valêncio e o resultado, no filme, é a mistura da interpretação de atores e depoimentos de descendentes dos fundadores da Colônia, além de trechos em animação feitos pelo desenhista Paixão. Nessa época, Valêncio continuaria se debruçando sobre histórias reais para criação de Os Onze de Curitiba – Todos Nós (1995). O filme conta a história de onze pessoas que foram presas, em março de 1978, sob a acusação de ensinarem marxismo às crianças de 1 a 6 anos de idade. Todos os onze eram pais ou professores de alunos do jardim de infância Oficina, porém, apenas ao final do filme, o público sabe estar diante de onze pessoas e não de onze atores. A explicação para o caso é dada por meio do poema Subterrâneos do Brasil, de Hamilton Faria, escrito na época das prisões para as crianças do jardim de infância. Todas as onze pessoas envolvidas no caso deram seus depoimentos, como nos porões da Polícia Federal, em separado, sem saber o que o outro havia contado para a câmera. Este filme agradou tanto a crítica que Valêncio recebeu seu segundo prêmio na Jornada da Bahia.

O último filme de Valêncio Xavier seria Nascimento, Vida, Paixão e Morte de Cristo, realizado em 1996. Nesta película, Jesus Cristo chega às praças e avenidas de Curitiba, sob a câmera e imaginação de Valêncio. O personagem de Jesus é vivido por uma figura controvertida da capital paranaense, o líder religioso Inri Cristo, que acredita ser a própria reencarnação de Cristo. As imagens que compõem o filme, feitas durante caminhadas pelo centro curitibano, somam-se a recortes de vida de Jesus realizadas nos primeiros tempos do cinema, fim do século 19. Os outros personagens do filme são todos interpretados por pessoas comuns, as quais Valêncio teve a sorte de encontrar pelas ruas. Seu João Baptista é interpretado por um mendigo. Sua Virgem Maria e o Menino são representados por uma andarilha e seu filho, e as Salomés são as adolescentes que, por acaso, quando das filmagens, dançavam em um palco armado na Praça Santos Andrade, em Curitiba.

Ao mesmo tempo em que se empenhava na realização de seus filmes, Valêncio Xavier na década de 1990 se dedicou ao cinema latino-americano, promovendo o projeto Cineamericanidad na Cinemateca do Museu Guido Viaro, a propósito dos 500 anos da descoberta da América. Como consultores do projeto trouxe a professora e pesquisadora Silvia Oroz e Cosme Alves Neto, da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro. Valêncio procurou traçar um painel abrangente da existência do cinema latino-americano, além de promover discussões sobre o papel do homem latino-americano e sua história por meio do cinema. O projeto consistiu em publicações e gravações em vídeo das palestras, oficinas e seminários. A palestra de Silvio Tendler, em 19 de setembro de 1991, sobre o filme La Spirale, de Chris Marker, abriu a programação.

Valêncio Xavier foi um homem de múltiplas funções e atividades. Esse texto se propõe apenas a ser um recorte de poucos, entre muitos projetos desse cineasta, desenhista, jornalista e personalidade da cena cultural brasileira chamado Valêncio Xavier.

Notas

[1] As Muitas Vidas de Valêncio Xavier é  título do filme que o cineasta Beto Carminatti está finalizando em Curitiba e que compõe a trajetória de Valêncio Xavier, com uso de depoimentos, entrevistas e de uma linguagem inspirada no universo do artista e pesquisador.

[1] “Mistéryos” curitibanos em Tiradentes – Artigo de Rodrigo Fonseca no Blog do Bonequinho, (26/01/2009 – http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/post.asp?t=misteryos-curitibanos-em-tiradentes&cod_post=156440 – Acesso em 28/01/2009).

[1] Valêncio e Karam, as ‘estrelas da manhã’, reportagem publicada no jornal Correio de Notícias, em 21.12.1985.


Solange Straube Stecz é jornalista, pesquisadora,  professora de cinema. Diretora da Cinemateca de Curitiba. Secretária do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro. Orgulha-se de ter começado sua carreira de pesquisadora graças ao estímulo de Valêncio Xavier.

Ana Pellegrini Costa é  estudante de jornalismo da Universidade Positivo e estagiária da Cinemateca de Curitiba.

Tormenta: Um filme Mineiro dos Anos 30

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 2 Comentários

por José Tavares de Barros

(Um)

Cada filme pode ser analisado por meio de diversos cortes ou níveis de leitura. Em se tratando de um marco histórico como Tormenta, lançado em Belo Horizonte em 1931, com “scenário” e direção de Arthur Serra (1), a tendência natural seria a de avaliá-lo apenas como obra de pioneiros, realizada nas circunstâncias mais adversas, numa época e num país em que o mercado exibidor cinematográfico estava dominado pelos filmes estrangeiros. Surgiriam as questões clássicas sobre as origens da ideia da produção, as influências recebidas, a motivação que conseguia reunir equipes de inevitáveis amadores, essas peripécias das filmagens e, para terminar, o destino quase sempre trágico da cópia ou das poucas cópias que se aventuravam a percorrer o mundo inacessível das salas de projeção. E viria a necessidade dos depoimentos dos pioneiros, nem sempre muito precisos, ou o recurso às memórias ainda menos seguras dos seus descendentes. Fique bem claro que nossa intenção não é a de rejeitar essa metodologia, a única possível nos casos muito numerosos de cineastas cujos filmes foram devorados pelo tempo e pelo descaso. Mas, quando se dispõe de cópias preservadas na sua quase total integridade, como no caso presente, parece ser bem mais objetivo e funcional trabalhar sobre a realidade do próprio filme, encarando-o sob um conjunto de pontos de vista capazes de revelarem seus íntimos significados.

Uma cópia de Tormenta, cuja existência surpreendeu os participantes do 3º Encontro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro ( Belo Horizonte, 1973 ), foi doada pela família do falecido Igino Bonfioli à filmoteca do Departamento de Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, através de um termo datado de 30 de dezembro de 1975. Da sua parte, propunha-se a Universidade a cuidar da preservação das seis bobinas originais, procurando inclusive a sua imediata recuperação através da tiragem de cópias de segurança. Essas, além de substituir o material perecível de nitrato de celulose, serviriam para a indispensável divulgação da obra ao grande público. Vencidas as dificuldades normais, foram levantados os recursos necessários para a recuperação de Tormenta no laboratório especializado da Fundação Cinemateca Brasileira, em São Paulo (2). No momento, já existe um contratipo de segurança tirado da cópia original, tendo-se perdido apenas cerca de 60 metros da 4a bobina, irremediavelmente melados por decomposição química. Resta, no entanto, a esperança de que os negativos de uma das partes do filme, incorporados posteriormente ao acervo da UFMG, correspondam exatamente ao trecho perdido. De qualquer forma, os dois minutos que faltam não chegam a prejudicar a razoável compreensão da trama, tratando-se de uma cena ???? cujo desenvolvimento é facilmente previsível. Resta, ainda, a solução de pequenos problemas técnicos, como o da pouca duração do filme naqueles meios que o puderem apreciar devidamente: escolas, cineclubes, centros de pesquisa. Numa etapa posterior, pretende a UFMG organizar uma antologia crítica com a função de levar as imagens de Tormenta a um público mais amplo: o do novo mercado de curta-metragem. Dadas essas premissas, passemos à análise da obra na sua dimensão objetiva de produto fílmico.

(Dois)

O primeiro plano de leitura há de ser o da trama que se apresenta em Tormenta, carregada de símbolos pouco sutis, com traços que revelam uma mentalidade romântica, completamente alheia às ideias modernistas que se difundiam na época. Dominada pelo enredo, que chega ao espectador principalmente através dos letreiros, a imagem funciona às vezes como mera ilustração das ideias transmitidas pela palavra.

A primeira informação sobre um velho compositor, Jacques Porto, nos dá a ideia do estilo que dominara nos letreiros, revelador também das limitações culturais de seus autores: “Há vinte anos já, que vi o que era viver naquele recanto pacato para esquecer a dor da tremenda tragédia de sua vida, onde perdera a esposa que lhe deixara um ente querido, fructo de um grande Amor destruído ainda em flor, pelo nefasto vício do jogo” (3). O “ente querido” é o filho Daniel, caracterizado como espírito pragmático, às voltas com as suas emocionantes caçadas, pouco atento à partitura que o pai vai compondo: “Destino será o nome dessa grande peça, emanada aqui destes velhos miolos”.

A segunda situação do filme introduz um elemento propriamente narrativo. Daniel (e agora vemos a intenção do roteirista de caracterizá-lo como caçador) afirmara “que fará as contas com quem me levar ao jogo”. Apesar disso, Jacques não consegue resistir aos apelos do vício, reforçados na passagem pelo botequim e na fartura das garrafas de cerveja na mesa do jogo. Mas Daniel surpreende os jogadores e os enfrenta. A bala que lhe destina o jogador principal, Júlio Guimarães, atinge Jacques e o derruba.

A terceira situação narra a morte de Jacques: “Em sua mente delirante pela aproximação da hora fatal, rodavam os compassos ainda melodiosos de sua composição ainda sem terminar…” Ele tem forças para se levantar do leito e compor os últimos acordes da partitura. Mas logo cai morto sobre o piano, mal tendo acabado de escrever o título de sua obra: Destino.

A quarta sequência corresponde à informação verbal sobre o ódio de Daniel, numa elipse de gosto nitidamente teatral. Definidos os sentimentos do rapaz (“os lamentos doridos dos sinos em sua alma como punhais agudos, e o desejo de vingança amargava-lhe os lábios agora sequiosos de vingança”) e insinuada a presença da morte pela superposição na imagem de uma trágica caveira, há o corte sugestivo para a presença de um delegado de polícia, que se confessa incapaz de descobrir crimes misteriosos que vêm ocorrendo na região. E ele ameaça Daniel: “Já sabia que você ia negar, mas um dia ainda o filo”. Ainda o recurso ao símbolo, desta vez com características nitidamente romanescas: “Numa noite em que os elementos ameaçavam coléricos, Tormenta da Natureza e Tormenta de sua Alma”.

Essa Tormenta simbólica se transformará, na sequência seguinte, em pretexto narrativo bem realista para introduzir a figura de Lúcia: pela primeira vez uma mulher atravessa o caminho de Daniel. Trata-se do bloco discursivo mais longo e, ao mesmo tempo, mais espontâneo e mais rico do filme. A moça, surpreendida pela tempestade iminente numa viagem de carro que fazia com o irmão Álvaro, pede refúgio na casa de Daniel, numa reviravolta cômoda mas bem pouco verossímil da trama. O rapaz os recebe, a princípio com desconfiança, logo depois com entusiasmo. Lúcia transforma os ambientes: “Não deu pouco trabalho: poeira e teia de aranha era um Deus nos acuda! Mas veja agora!” Nasce o amor, mas com complicações bem dignas de um folhetim da época ou, se quisermos, das novelas da TV que nos agridem hoje em dia. Para Lúcia existe um amor não correspondido: “Engana-se. O dono desta (aliança) não possuirá jamais meu coração”. No caso de Daniel surge a brutal paixão provocada em outra moça, Suzana, pela primitiva selvageria do rapaz. É interessante registrar aqui o recurso à citação bíblica, usado pelos autores com a intenção evidente de reforçar a credibilidade e sobretudo a seriedade do relato: “E a serpente, vendo inabalável o espírito de Ananias, procurou seduzir a Nathan, seu irmão mais novo”. O impasse se resolverá pela introdução, na trama, desse irmão, personagem que permanecerá pouco explicitada num fio narrativo secundário, claramente truncado. Resolvidos os impasses de ambos os lados, consolida-se o amor de Lúcia e Daniel nas caminhadas idílicas por lugares cheios de sombra e de paz, nos passeios de barco, na imaginação de uma nova casa que seria a deles, na alegria ingênua de uma festa na roça onde violeiros descobrem e executam a partitura do velho Jacques.

A sexta sequência introduz a tragédia definitiva. Daniel descobre que Lúcia pertence à família Guimarães, tem um ímpeto de ódio cego, apalpa o revólver, fica lívido como um cadáver. Na resposta de Lúcia, introduzem os autores um confronto bastante curioso: “Perdão Daniel! É por acaso um crime ser-se filha de um jogador?” A promessa feita diante do pai morto (o ódio de Filho orphão), e não o inevitável castigo pelos crimes cometidos pelo rapaz, é que será posta como obstáculo contra o “Amor doce e humano!” “Perdão meu pai, já não poderei mais vingá-lo”, dirá Daniel ao jogar no chão o punhal que mataria a amada. Acho bastante curioso esse posicionamento dos autores do enredo, na medida em que revela uma subordinação ao conceito de honra familiar a ser defendida a todo custo, encontrável em certa literatura do século passado e em determinados grupos sociais ainda contemporâneos.

A sequência final simplesmente desenvolve o clímax preparado pelas situações anteriores. Daniel resolve desaparecer, numa noite em que mais uma vez se precipita a Tormenta “lá fora em convulsões de urros roucos e gemidos dilacerantes”. É interessante notar a preocupação dos letreiros em marcar a presença, moralizadora, do irmão de Lúcia, que já não comparece na ação: “Deixo com vocês a casa…” Por outro lado, fica bastante simplificada a reação psicológica da moça ao conhecer a verdade: Daniel diz que perdeu sua sede de vingança, joga o revólver no chão e ela, simplesmente, deixa a cena. A retirada de Lúcia é visível pretexto narrativo para a chegada de Júlio e de Álvaro Guimarães, que deparam com um Daniel indefeso e facilmente o atingem com um tiro. Ao retornar Lúcia, o rapaz ainda terá forças para encenar o beijo que consagraria o amor, não tivesse ele condenado pela morte: “Com os lábios entumecidos (sic) pela dor, vendo a vida fugir-lhe pouco a pouco, ainda quis ele prosseguir na comedia da Vida, da sua vida de Tormenta, dando àquela a quem amava, mais alguns minutos de esperança, aceitando dos lábios dela aquelas palavras de um futuro dulcíssimo que já era impossível pela força do destino.”

Nossa exaustiva citação dos letreiros teve o propósito de oferecer ao leitor o prazer de saborear e de avaliar criticamente a manifestação, nos autores do scenário de Tormenta, um modo bastante curioso de encarar o Cinema. O projeto foi extremamente digno e sério, sem a menor dúvida. Mas confundia-se seriedade e necessidade de se sustentar a trama com rasgos de paixão e de tragédia exacerbados, usando-se a tortuosidade dos textos como substitutivo de uma inatingível, embora visivelmente desejada, qualidade literária. Pode-se concluir, sem receios, que os artesãos do acanhado cinema mineiro daqueles tempos eram obrigados a se valer dos poucos recursos culturais de que dispunham, não contando com o auxílio de quem se julgasse instalado em esferas intelectuais mais altas. Os erros elementares de sintaxe e de pontuação, que se notam nos letreiros, comprovam muito bem a afirmativa. Outra conclusão diz respeito ao final do filme. Por que não um final feliz, um happy-end à maneira dos filmes americanos que já invadiam o mercado exibidor da época? (4) Acredito que seja possível vislumbrar no desfecho do filme mais um indício da dignidade que poderia definir o projeto artístico dos autores. Parece que não se inspiravam eles num cinema convencional e estereotipado, mas nas propostas, certamente mais raras, dos filmes experimentais ou, pelo menos, naturalmente engajados que chegavam às telas mineiras. A tragédia, no caso, registra uma tomada de posição, mesmo que inconsciente. O estilo do filme, como veremos em seguida, sugere a presença de uma certa influência expressionista, aproximando-se a proposta de Tormenta, sob esse prisma, da experiência contemporânea do Ganga Bruta, de Humberto Mauro.

(Três)

Foi intencional a omissão, até esse ponto, do nome de Igino Bonfioli, universalmente citado como o autor principal de Tormenta. Nos créditos de abertura ele aparece como mero “photógrapho”, mas é fácil imaginar que, na consecução do projeto, coube-lhe a verdadeira parte do leão. Antes de mais nada, Bonfioli é o fotógrafo profissional, dono de um conceituado estúdio em Belo Horizonte (5), que, já em 1923, se interessa pela produção de filmes posados, tendo iniciado em torno de 1919 sua obra monumental de documentário. É fácil também definir essa incursão nos domínios pouco lucrativos do filme de ficção como uma espécie de veleidade de homem teimoso, um prolongamento natural da sua habilidade em restaurar e em construir equipamentos, em dominar todos os segredos da imagem fotográfica, desde os processos de revelação e copiagem às estimulantes possibilidades oferecidas pelas trucagens de laboratório (6). Os testemunhos de familiares confirmam também essa posição de Bonfioli como dono da ideia, como responsável pela captação e pela construção narrativa das imagens. Ocupado com esse plano técnico, é natural que ele tenha se valido da colaboração de outras pessoas, que julgava serem mais versadas nas artes da redação de scenário e na direção de atores.

De qualquer forma, dúvidas que ainda pairam poderiam ser dirimidas por meio do testemunho do ator Álvaro Santelmo, sempre disposto a recordar sua experiência de intérprete da personagem Daniel Porto, há quase quarenta anos. Limitemo-nos, por enquanto, à presença inegável de Igino Bonfioli atrás da câmera que filmou Tormenta.

Sua habilidade, aquilo que sem temor poderíamos chamar de sentido de Cinema, revela-se antes de mais nada no modo de descrever, com a câmera, os momentos de transição que se intercalam entre os blocos compactos da trama. Em primeiro lugar, a abertura do filme, com longos movimentos de câmera que passeiam por ruas de Belo Horizonte até enquadrarem a torre de uma igreja, com sinos que soarão em diversos momentos da narrativa: para conotarem a presença da morte, como símbolo religioso; para marcarem a passagem do tempo.

Encontramos um segundo exemplo da influência expressiva de Bonfioli no início da sequência que introduz a decadência de Daniel, após a morte do pai. A câmera, posta à altura do chão, enquadra apenas suas pernas, abaixo dos joelhos, e acompanha em panorâmica sua trajetória do portão externo da casa até a porta do alpendre. No plano seguinte, em contracampo, a caminhada continua a mostrar apenas as pernas do rapaz até o momento em que ele se joga sobre a poltrona da sala. O movimento agora é ascendente para enquadrar a personagem já sentada, numa atitude de aflição, acendendo um cigarro e passando as mãos pelos cabelos. Nada de extraordinário nessa elaboração fílmica de Bonfioli, obviamente. Mas, sem dúvida, uma intuição muito justa do potencial expressivo do Cinema e sua utilização adequada, apesar da precariedade dos recursos técnicos disponíveis. Na mesma linha, é ainda mais admirável a sequência que se insere um pouco adiante. O plano começa com um detalhe de placa, meio torta, onde se lê: “Daniel Porto”. A câmera inicia longa panorâmica, descrevendo o mourão de uma cerca, até o nível do chão. Segue depois para a esquerda, encontra a cancela e sobe por ela, parando quando enquadra uma caixa de correio, velha, num estado de abandono. O plano seguinte é uma caminhada subjetiva pelos já conhecidos assoalhos da sala, interrompida quando surge o velho piano coberto de poeira e de teias de aranha. No chão, papéis jogados, sujeira. Depois, o escurecimento da cena que vem completar a impressão de abandono que a Bonfioli interessava transmitir.

O domínio daquele que seria o código comum da linguagem fílmica, nos anos 30, manifesta-se também na habilidade de Bonfioli em montar, ou melhor, em decupar as cenas. Na base dessa arte, seu incrível sentido de escolha dos campos abarcados pela câmera de filmar. É a presença da sua vocação de documentarista, de fotógrafo profissional, dimensão que adquire notável ênfase se compararmos seu trabalho com o de cinegrafistas contemporâneos, como João Carriço, de Juiz de Fora. Em Bonfioli nunca há o enquadramento irregular, descuidado, nem a imagem fora de foco ou mal exposta.

Passando à analise da mencionada articulação dos planos, vejamos apenas um exemplo. Depois que Lúcia se instala na casa, a narrativa mostra-a em diversas situações como mulher preocupada com a limpeza. Na parede, um relógio parado. Lúcia entra no quadro, muito brejeira, toca numa cadeira desmontada. No plano seguinte, entra pela direita, levanta uma pilha de papéis velhos, mexe nuns panos que estão debaixo de uma mesinha, até sair pela esquerda. No próximo plano, Lúcia já aparece à direita do enquadramento, ao lado do piano: faz um gesto na direção da câmera, passa um dos dedos sobre a poeira espessa, quase sai pela direita do quadro. No momento seguinte, ela está de pé sobre uma cadeira: o plano mostra suas pernas, bem próximas, num toque de erotismo; depois, a câmera sobe por elas até descobrir Lúcia que acerta o relógio de parede. O discurso prossegue ainda em várias tomadas que continuam a descrever as ações de Lúcia num encadeamento de imagens muito fluente, denotando uma consciência perfeita de ritmo cinematográfico.

Outro setor da realização fílmica, talvez o mais privilegiado por Bonfioli, é o das trucagens. Aqui ele se revela como o técnico curioso, capaz de admirar e de imitar os truques que vê nos filmes aclamados pelo público. No fundo, o velho ranço do homem de província, disposto a provar que é capaz de fazer em Minas um trabalho digno do Cinema Mundial. É claro que os resultados ficam muito aquém da expectativa, do ponto de vista do domínio técnico. Mas é inegável a força de imaginação que o possuía. A um certo momento, Daniel manipula uma espingarda, numa ação inocente de bom caçador. Para introduzir a ideia de ódio e de tragédia, Bonfioli faz aparecer uma pequenina forma no centro do quadro, numa sobreimpressão que avança progressivamente sobre o espectador até definir-se como uma caveira ameaçadora. Num outro ponto, Daniel debate-se em remorsos pelos crimes cometidos. Ouve ruídos estranhos, desespera-se, ergue uma cadeira e quebra os vidros de uma janela. Pelo vão escuro, avança ameaçadoramente o rosto carrancudo do inimigo Júlio Guimarães. Mais elaborado tecnicamente, apesar de cair num nível de artificialismo ingênuo, é o recurso usado para sugerir a passagem do tempo. No plano, um calendário que se desfolha, um relógio com os ponteiros em disparada, uma ampulheta funcionando. Ao fundo, a figura minúscula de um homem que se movimenta, num efeito que revela uma verdadeira proeza de artesão. Também nessa linha das trucagens, há o uso bem mais funcional das fusões como elementos explicitadores da narrativa; é o caso da aspiração dos namorados por um futuro feliz, consubstanciada na casa nova que se sobrepõe ao barco no qual passeiam.

São evidentes as qualidades de Bonfioli na construção cinematográfica de Tormenta, sobrepondo-se inclusive às deficiências do roteiro e à postura amadorística dos atores. Elas o situam, com facilidade, como uma presença significativa no panorama do cinema brasileiro, autor de uma obra que só agora começa a ser realmente estudada (7).

(Quatro)

Está claro que o presente artigo não esgota a riqueza de aspectos contidos no filme. Seria preciso mencionar ainda a presença potencial da música, numa nítida intenção de incluir Tormenta no âmbito do Cinema sonoro, a novidade da época. Não se tem notícia precisa de que Bonfioli tivesse procurado a sonorização; mas a aspiração ansiosa por essa dimensão está presente em cada momento da narrativa. Já ficou claro que a partitura Destino constitui o leit-motiv do filme. Acrescente-se que o piano faz parte integrante da cenografia da casa de Daniel, sublinhando os momentos de tragédia e de felicidade (os violeiros na festa da roça). Na sequência final, a partitura cairá no chão e marcará a morte inevitável de Daniel. As experiências de Bonfioli na área da sonorização ótica da película só aparecerão nos anos seguintes, inclusive com a construção de equipamentos próprios, mas desde então já manifestava atitudes de homem atualizado diante dos progressos de uma técnica na qual se integrava plenamente.

Seria preciso mencionar ainda a deliciosa expressividade das viragens do filme. Realizado naturalmente em suporte preto e branco, a cópia existente foi submetida a colorações que tinham a função precisa de marcar o tom dramático das sequências, ou a de sugerir o efeito noturno, como é o caso das cenas da festa da roça. Assim, os tons vermelhos surgem para exprimir o amor ou o ódio, enquanto que a tonalidade verde expressa tranquilidade e paz. Mais um esforço do Bonfioli-fotógrafo no sentido de conseguir um lugar ao sol para seu filme, equiparando-o ao produto estrangeiro. Um esforço quase heróico para que Tormenta fosse exibido em Minas e no País inteiro, vencendo a concorrência. E gerasse um retorno do capital empatado, possibilitando a realização de novos filmes. Não há a menor dúvida de que tenham sido estes os sentimentos e os desejos do Igino Bonfioli de quarenta anos atrás. E essa postura, revista sob o prisma de quatro décadas de tentativas e de fracassos, transforma-o num homem muito sintonizado com a problemática de 1978, quando em Minas ainda se tenta descobrir os caminhos de um Cinema inexistente.

(Cinco)

Uma informação complementar se impõe. Os originais de Tormenta, junto com o contratipo e com a cópia de segurança em 35mm, retornaram ao laboratório da Fundação Cinemateca Brasileira para a tiragem de uma cópia definitiva, que incluirá: a multiplicação dos letreiros demasiado curtos, o que permitirá sua leitura normal; a inserção dos trechos encontrados após a execução dos primeiros serviços de copiagem, na medida em quem vierem a coincidir com o material deteriorado; a reconstituição, em película colorida, das viragens originais. Depois de vencidas dificuldades de ordem financeira e burocrática que, certamente, ainda hão de surgir, teremos chegado ao termo final de uma etapa de trabalho. Paradoxalmente, com um longo atraso, terá início a carreira de Tormenta: o filme será oferecido ao domínio público, como dizíamos no início do artigo. Nossa preocupação, que não evolve um bairrismo ingênuo, mas a convicção de que possuímos em Minas instrumentos mais adequados para avaliar e julgar o produto de nossos antepassados mineiros, é a de que surjam condições para uma abordagem sistemática e o mais possível completa desse material inédito. Que não paire sobre Minas o gosto meio amargo da prospecção e da descoberta não conduzidas à plenitude da pesquisa terminada.

NOTAS

(1) – Tormenta – ficha técnica – Juan Bal Piacenza Heitor de Assis apresentam este film da S.A.I.F.A. YARA – Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil – Scenário e direção de Arthur Serra – Protographia de Igino Bonfioli – Montagens de Pedro Piacenza – Atores: Álvaro Santelmo, pseudônimo de José Americano (Daniel), Carlos Silva (Jacques) Alda Rios (Lúcia), Carlos Neuron (Júlio Guimarães), Severino Peixoto (delegado), Victorio Nunes, pseudônimo de Vittorio Tocaffundo (Álvaro), C. Cavalcanti (Lauro) e Waldy Braga (Suzana), 1930/1931.

(2) – Trata-se de laboratório destinado basicamente a serviços de preservação e de recuperação de filmes, sem finalidades lucrativas. Foi montado com recursos de órgãos governamentais, destacando-se a participação do Ministério da Educação e Cultura, através do DAC, da FUNARTE e da EMBRAFILME. Propõe-se o laboratório a restaurar filmes antigos de todas as procedências, cobrando apenas o custo do material empregado desde que os originais e contratipos fiquem depositados em São Paulo.

(3) – Foram mantidas a grafia e a pontuação dos letreiros originais.

(4) – Um terreno muito fértil de pesquisa seria o da prospecção dos filmes exibidos nos cinemas de Belo Horizonte nos anos anteriores à produção de Tormenta, objetivando-se a determinação das eventuais influências sofridas por seus realizadores.

(5) – Uma pequena biofilmografia de Igino Bonfioli foi publicada no Boletim dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro, 1976, setembro, nº 6, ano V, págs 18 a 21. Ele nasceu a 11 de dezembro de 1886 em Negrar, província de Verona, Itália, e morreu a 23 de maio de 1965, em Belo Horizonte.

(6) – Foram conservados alguns aparelhos usados e montados por Bonfioli. Acham-se armazenados no Departamento de Fotografia e Cinema da escola de Belas Artes da UFMG, enquanto se estuda um local adequado para sua exposição permanente ao público.

(7) – O Departamento de Fotografia e Cinema está ultimando a edição de um Boletim que conterá o roteiro de posteriori de Tormenta, além de outras informações sobre a obra de Bonfioli.


José Tavares de Barros (1936-2009) foi um dos fundadores do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro e um dos idealizadores da série Cadernos de Pesquisa. Professor, crítico e montador de cinema, foi vice-presidente mundial da OCIC e organizador do Prêmio Margarida de Prata da CNBB.

As Revoluções Clássicas de Escorel

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 1 Comentário

por Carlos Alberto Mattos

A trilogia sobre as revoluções dos anos 30 destaca o rigor clássico do documentarista Eduardo Escorel e faz o elogio da preservação de imagens e depoimentos históricos.

Com o longa-metragem 35 – O Assalto ao Poder (2002), Eduardo Escorel deu prosseguimento a um projeto raro em se tratando de documentarismo histórico no Brasil. Um mesmo diretor, cercado dos mesmos principais colaboradores, dispõe-se a recontar a história das grandes sublevações do país. O filme é a conclusão de uma trilogia que se abriu em 1990, com 1930 – Tempo de Revolução, e prosseguiu em 1992, com 32 – A Guerra Civil, ambos médias-metragens. Escorel e seus colaboradores mais próximos prometem para o futuro mais três ou quatro opus, cobrindo o período do Estado Novo até a redemocratização do país a partir de 1985.

A produção do filme sobre a frustrada tentativa dos comunistas de tomarem o poder em 1935 teve início em 1994, mas ficou oito anos interrompida por falta de recursos.

Muita coisa além da imagem recorrente da águia do Palácio do Catete (uma alusão à expertise política de Getúlio) unifica os três documentários. Eles nasceram de um projeto do produtor Claudio Kahns e do professor de Ciências Políticas da USP André Singer, que viria depois a ser porta-voz do Presidente Lula. Todos têm roteiro e texto do jornalista Sergio Augusto e do próprio Escorel. Em comum, acima de tudo, a opção por uma linguagem de documentário expositivo clássico, em que a argumentação principal fica com o narrador em off (Edwin Luisi nos dois primeiros, Paulo Betti no último). É um modelo deixado para trás pelos documentaristas modernos, que se baseiam mais nas entrevistas, na captação direta de fatos ou numa espécie de “narrador pessoal” afetado pela vivência, a emoção ou mesmo o humor. O uso dessa “voz de Deus”, relativamente anódina, confere um aspecto didático aos filmes. O que, aliás, não é sem propósito.

A trilogia pretende, antes de tudo, clarear a visão do espectador sobre um conturbado período do qual só se conhecem versões – incompletas, manipuladas, desencontradas. O didatismo não está fora das pretensões de Escorel, embora isso não seja tomado como pretexto para a superficialidade e a pesquisa inconsistente. Os três filmes procuram um rigor de abordagem (imagino como Sérgio Augusto deve ter reprimido sua verve sardônica…) que se reflete na sobriedade do estilo.

Duas reflexões básicas atravessam a trilogia. Primeira: as revoluções dos anos 30 fracassaram por mal avaliar o potencial de adesão do povo e mesmo de militares de outros estados fora do foco detonador. Ou seja, foram fantasias desligadas das chamadas condições objetivas. Segunda: as quarteladas e levantes frustrados acabaram pavimentando o caminho para o recrudescimento do autoritarismo no Brasil, que culminaria com o Estado Novo e, mais adiante, o regime militar pós-64.

Em 1930 – Tempo de Revolução, uma produção da Videofilmes editada por João Jardim (futuro autor de Janela da Alma, Pro Dia Nascer Feliz, Lixo Extraordinário e Amor!), Escorel historia antecedentes como os movimentos operários da década de 1910 e as revoltas do Forte de Copacabana em 1922 e dos tenentes paulistas em 1924. Imagens preciosas dão conta da Exposição do Centenário da Independência, do Rio de Janeiro nos anos 20, da prisão do presidente Washington Luís e da campanha eleitoral de Arthur Bernardes (as primeiras filmagens do gênero no país). O texto contém uma pequena imprecisão: o filme Limite, de Mário Peixoto, não foi lançado em 1930, mas somente em maio de 1931.

Em termos de estrutura, 1930 dedica mais tempo e material aos antecedentes que à revolução propriamente dita. Esta chega de maneira sintética e abrupta no bloco final do documentário. Mas saímos do filme satisfeitos com a clarividência do professor Antonio Cândido, quando afirma que ali “o povo chegou finalmente à vida política, embora ainda tutelado pelo governo”.

Os mesmos versos de Carlos Drummond de Andrade fecham 1930 e abrem 1932 – A Guerra Civil: “Deus vela o sono e os sonhos dos brasileiros. Mas eles acordam e brigam de novo”. A briga, daquela vez, mobilizou cerca de 35.000 homens das tropas paulistas contra o governo de Vargas e obteve razoável repercussão popular, com base na nascente cultura de massa brasileira. O tom geral dos curtos depoimentos de historiadores e cientistas sociais recrutados por Escorel é de minimizar a importância dos separatistas paulistas no bojo da Revolução de 32. Mas tampouco se nega o sentimento, dominante em São Paulo, de que o estado carregava a reboque o resto do país.

Neste segundo momento da trilogia, o material de arquivo é submetido a um índice maior de manipulação (no bom sentido, sempre) e inclui cenas curiosas de soldados mineiros zombando dos ataques paulistas em pleno front. As narrações radiofônicas do locutor oficial do movimento, Cesar Ladeira, também ganham oportuno destaque. Dos três ensaios revolucionários, este é o que goza das maiores simpatias no âmbito do filme. O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro recomenda às esquerdas que façam as pazes com a Revolução de 32. E o texto de Sérgio Augusto e Escorel conclui com uma exortação ao “sonho de um Brasil novo”. Que, infelizmente, resultaria apenas no Estado Novo.

Finalmente, 35 – Assalto ao Poder acabou contando com recursos e tempo para um tratamento ainda mais aprofundado que os dois filmes anteriores. Luís Carlos Prestes e o Partido Comunista do Brasil são os eixos em torno dos quais tudo se organiza. Mas há também depoimentos importantíssimos de Apolônio Carvalho, tenente revolucionário, do escritor Fernando Morais sobre Olga Benário e outras histórias de intolerância nos quadros do PCB, bem como de protagonistas da chamada Intentona Comunista (nome dado pelos militares para depreciar a sublevação).

Ali pela metade do documentário, instala-se um debate virtual entre historiadores sobre a importância da participação da Internacional Socialista no levante dos comunistas brasileiros. O jornalista William Waack, que sustenta no filme a opinião de que tudo fora planejado e executado desde Moscou, chegou a polemizar no jornal O Estado de S. Paulo, classificando o trabalho de Escorel como “tímido” e “hesitante”. O assunto, pelo que se vê, ainda está longe de um esclarecimento definitivo. A colaboração de Moscou, argumentam várias vozes no filme, foi mais simbólica e baseou-se em informes dos brasileiros, provavelmente traídos por excesso de otimismo. Mais uma vez, as fantasias teriam suplantado a análise da realidade. A adesão de outros estados nunca chegaria aos sublevados de Natal, Recife e Rio. O povo manteve-se à margem dos acontecimentos. O filme termina ao som de “Nada Além (de uma ilusão)”.

35 – Assalto ao Poder põe em destaque dois fatos chocantes. O governo Vargas teria inventado a versão de que oficiais foram assassinados covardemente pelos comunistas enquanto dormiam. De outro lado, membros do PCB decidiram e executaram o estrangulamento de Elza Fernandes, de apenas 16 anos, mulher de um dos próceres do próprio Partido, a título de queima de arquivo. A linha que separa heróis de fracassados é tênue e casual.

Como sempre, os materiais de arquivo fluem com propriedade e argúcia, ilustrando ou ampliando o sentido do que é dito e argumentado. Tome-se, por exemplo, o trecho de um cinejornal em que Getúlio aparece sorrindo para subitamente assumir a carranca de um pai autoritário. Ou as valiosas filmagens de congressos da Internacional Socialista, que mostram bem vivo o fervor utópico da “revolução mundial” enquanto Stálin, em suas declarações oficiais, a tratava como “um mal-entendido tragicômico”.

As revoluções de Eduardo Escorel são aulas de História e de documentarismo clássico. A enorme predominância de velhos filmes no tecido de sua argumentação serve, ainda, para atestar a importância da preservação de arquivos cinematográficos. Da mesma forma, o recurso a depoimentos colhidos por outros cineastas em várias épocas é um elogio ao registro incansável de testemunhos históricos. Mais direta e decisivamente que o ficcionista, o documentarista é sempre um herdeiro de todos os seus colegas e antecessores.


Carlos Alberto Mattos é crítico e pesquisador de cinema, autor de livros sobre os cineastas Walter Lima Jr., Eduardo Coutinho, Carla Camurati, Jorge Bodanzky, Maurice Capovilla e Vladimir Carvalho.

Geração 1980 – Os Percalços do Cinema Paranaense no Governo Collor

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 2 Comentários

por Isadora Raquel Rupp

O cineasta francês Jean-Luc Godard, criador de um dos movimentos mais importantes do cinema, a Nouvelle Vague, já dizia que as grandes manifestações cinematográficas começam formadas por um grupo de cinéfilos. E foi justamente assim que o cinema paranaense cresceu, mais especificamente, a geração tratada neste artigo. Garotos que, ao invés de reunirem-se para jogar bola, preferiam fazer filmes no início da década de 1980. Atitude, em tese descompromissada, que possibilitou uma nova cara à cinematografia paranaense.

Esses realizadores, assim que começaram a se consolidar, sofreram o impacto das políticas do governo Fernando Collor de Mello, como a falta de verbas e de espaço para divulgação de filmes feitos sem dinheiro e com muita boa vontade. A crise, ocasionada, entre outros fatores, pelo fechamento da Empresa Brasileira de Filmes – Embrafilme, maior distribuidora e divulgadora do cinema nacional, conseguiu desmantelar o cinema brasileiro e paranaense. Apesar de antiga e com nomes como Sylvio Back, até aquele momento o cinema paranaense nunca havia tido tantos novos profissionais e ideias. Formados pela Cinemateca de Curitiba, fundada em 1975, o local foi o polo gerador do cinema no estado. Idealizada pelo escritor Valêncio Xavier (que morreu no dia 5 de dezembro de 2008), juntamente com Francisco Alves dos Santos – o Chico –, ela é a terceira no Brasil.

Desde o início, além da difusão de filmes, a cinemateca preocupou-se com a formação de novos profissionais, oferecendo cursos livres teórico-práticos gratuitos. Foi dessas primeiras turmas que surgiu o pessoal da Geração 1980, que encontrou, finalmente, um espaço para o debate. “A Cinemateca sedimentou a nossa paixão pelo cinema, que começamos a ver como uma possibilidade de expressão. Pra mim, foi um laboratório mágico”, diz o cineasta Beto Carminatti, que iniciou sua carreira no começo da década de 1980 e gravou seu primeiro filme, Delirium Dreams, com a técnica Super 8.

Além dos cursos, a Cinemateca oferecia a possibilidade de montar e divulgar filmes. “Naquele momento, em 79, 80, você só teria possibilidade de ter um curso fora do Paraná. Então, o nosso ponto de encontro era efetivamente lá. As exibições, as mostras e o pouco equipamento que tinha ali, uma moviolazinha Steinbeck 16mm, uma câmera bem ruim, que usava filme reversível… era muito precário, mas para a gente era tudo”, diz a cineasta Berenice Mendes, formada pela primeira turma.

Com todas as manifestações cinematográficas promovidas naquela década de 1980 no melhor estilo “Cinemateca Francesa”, as ideias e produções estavam efervescendo. Porém, o fechamento da Embrafilme logo no início do governo Collor, em 1990, acabou prejudicando os mecanismos que a instituição oferecia. Pois, além de distribuidora, a estatal teve um papel de escola para muitos cineastas brasileiros. Ela tornou possível a formação e especialização de muitos técnicos e de mão-de-obra para a atividade cinematográfica.

Um dos primeiros impactos para a Cinemateca de Curitiba foi a interrupção da chegada de filmes. “A Embrafilme nos fornecia filmes sem nenhuma burocracia, tínhamos um convênio bom. E também nos deu know-how de equipamento”, explica o ex-diretor da Cinemateca, Chico Alves. As monografias produzidas pelos estagiários sobre cineastas e movimentos cinematográficos no Paraná eram resultado de convênios com a estatal. “Então, se não fosse esse estímulo e esse apoio nós não teríamos avançado como avançamos”.

Os acordos com embaixadas para exibição de filmes estrangeiros também foram interrompidos, já que a Embrafilme ajudava nesse trâmite para conseguir o material. Com profissionais qualificados sem ter onde trabalhar e com poucos filmes nacionais lançados no período, a Cinemateca não tinha mais películas brasileiras para exibir. “Conseqüência? O cinema estrangeiro tomou conta, dominou ainda mais”, frisa Chico.

Os cineclubes criados acabaram minguando, pois a Embrafilme vinha estruturando, durante o tempo que existiu, uma distribuidora exclusiva para atender cineclubes. “Era uma experiência riquíssima. Afinal de contas, criar uma estrutura para os jovens discutirem filmes é muito importante. E isso se foi com o Collor e com a Embrafilme. Trágico em todos os sentidos”, lamenta o ex-diretor.

Logo que assumiu a presidência, Collor pregou para o Brasil e, consequentemente, também para o cinema, políticas totalmente neoliberais. Rebaixou o Ministério da Cultura para Secretaria (o que significa, automaticamente, um número menor de verbas destinada para a área) e extinguiu a lei nº 6.281/75, conhecida como Lei do Curta (que determinava a exibição obrigatória de um curta-metragem nacional antes de um filme estrangeiro). “A exibição era compulsória. Foi um programa interessante, mantido por uns 10 anos aos trancos e barrancos. Hoje, não poderíamos forçar o exibidor. Foi uma saída desesperada, mas necessária”, salienta Frederico Fullgraf, presidente, na época, da Associação Brasileira de Documentaristas – ABD.

"Vamos Junto Comer Defunto"

No pacote de desmantelamento, como já citado, veio o fim da Embrafilme, criada em 1969. Em sua melhor fase, ocupou aproximadamente 35% do mercado cinematográfico brasileiro e alcançou uma média de 50 milhões de espectadores para filmes nacionais. Por meio dela, conseguia-se apoio financeiro para produções, ajuda para montagem, divulgação via escritórios (cada capital tinha uma sede) e auxílio para distribuição. Elói Pires Ferreira, cineasta curitibano que dirigiu seu primeiro filme em 1988, Vamos Junto Comer Defunto, e que é um dos expoentes da Geração 1980 no Paraná, afirma que o mecanismo de fomento da empresa era interessante, já que havia contrapartida por parte do cineasta. “Ela tentava proporcionar uma certa autossustentação. Financiava o filme, distribuía e ficava com uma parte do recurso. Esse dinheiro era recolocado na produção de outros. Não era só o Estado paternalizando. Pelo contrário, havia uma compensação”.

A infraestrutura para o cinema brasileiro e artes em geral ficou totalmente prejudicada naquele momento. Sem leis e com problemas estruturais, faltou trabalho para muita gente. A cineasta Berenice Mendes acredita que Collor causou um prejuízo imenso para os brasileiros ao tratar a cultura de forma “tão irresponsável”. “O que ele fez foi desmantelar todo o aparato e estrutura de produção, deixando à míngua não só produtores independentes e artistas, mas acima de tudo jogando fora, na lata do lixo, agentes de cultura que trabalharam a vida inteira naquilo”.

Um exemplo eram os chamados produtores-delegados, formados para acompanhar a produção dos filmes financiados pela Embrafilme. O profissional precisava entender das técnicas, custos e orçamento de uma produção. “Gente que tinha toda aquela experiência da atividade, de repente, ficou sem ter o que fazer! Uma boa parte foi mandada embora e outra permaneceu sem função, vagando no Estado”, relembra a cineasta.

O cineasta Marcos Jorge, diretor de filmes como o premiado Estômago (lançado em 2007), resolveu partir para uma espécie de “exílio” na Itália por conta da desorganização cultural. Em 1991, dirigiu Criação, uma co-produção entre Brasil e Itália, mas utilizou exclusivamente dinheiro do próprio bolso. “A ação do governo Collor em relação ao cinema foi um dos motivos que me levaram a sair do Brasil. O cinema simplesmente acabou, e eu fui atrás de uma formação e de uma experiência que no país já não estavam disponíveis”.

Anteriormente ao governo Collor, a Embrafilme já vinha definhando na década de 1980, prejudicada pela economia instável do Brasil. Na “década perdida”, a inflação podia chegar a até 90% ao mês e a moeda se desvalorizava, o que atingia o cinema, atividade diretamente atrelada ao valor do dólar. Os preços de produtos como películas e equipamentos dispararam, e projetos em andamento incentivados pelo governo minguaram. “Se um processo ficasse três meses parado virava um nada. Foi assim por boa parte da década de 1980 e 1990”, relembra o cineasta Fernando Severo, um dos pioneiros na técnica Super 8 no Paraná (utilizada principalmente na década de 1970).

O desgaste ideológico foi outro problema enfrentado pela Embrafilme. Havia uma série de denúncias de produtores que afirmavam existir um “apadrinhamento” dentro da estatal, ou seja, de que os favorecidos seriam sempre os mesmos cineastas. “Consta que o Collor liquidou a Embrafilme.Ela já vinha sendo liquidada. E aí fecharam aquela porcaria, que já tinha degenerado em um balcão de atendimento entre amigos”, opina Frederico Fullgraf. “Quem ganhava dinheiro eram os cineastas cariocas e paulistas, que financiaram seus apartamentos, compraram seus carros, chácaras. Isso foi a Embrafilme durante 20 anos, foi realmente um bordel. Não podia realmente funcionar mais, não dessa maneira”.

Criticada ou não, o fato é que os cineastas viram ruir o único recurso com que, em tese, poderiam contar. A desesperança tomou conta da classe cinematográfica e ninguém sabia ao certo qual direção tomar. Trabalhar com vídeos institucionais foi a saída para cineastas como Werner Schumann. “Os profissionais foram sobreviver em outros rumos. Era uma frustração grande. De repente, nos vimos em um país sem cinema”. Em 1990 ele realizou de forma independente o curta-metragem Volk!, que teve como principais protagonistas galinhas. “Volk, em alemão, significa povo. Quis fazer uma analogia entre esse sistema das granjas e o nazismo. Na verdade, como não tinha muito dinheiro, resolvi fazer com as aves. Ficou bem mais fácil, fomos em uma granja e filmamos”.

A Embrafilme também era julgada por carregar nas costas um enorme peso político: o fato de ter sido criada na ditadura militar. Com o fim do regime, veio o questionamento: a instituição estaria guardando os ranços do período e prejudicando a democracia? Esse foi o argumento do então secretário de cultura do governo Collor, Ipojuca Pontes, para fechar a empresa. Elói Pires Ferreira discorda: “Apesar de estar sob a égide da ditadura, os beneficiados pela empresa tinham liberdade criativa. Existia censura, obviamente, mas era em outros moldes. Acho uma bobagem criticar porque foi feita no regime militar. Saíram obras importantes nesse período que mantiveram a nossa fisionomia cinematográfica. Não teríamos cara nenhuma se não fosse isso”.

Por conta do fechamento da estatal, muitas produções paranaenses estão inacabadas até hoje. É o caso de um projeto de Geraldo Pioli e Paulo Friebe. “Tínhamos rodado um filme em 16mm com recursos próprios no começo de 1990, Entrega da Imortalidade. Economizamos e compramos duas latas com película 16 mm. E só. Não tinha dinheiro pra mais nada”, conta Pioli. O material disponível possibilitava apenas 24 minutos de gravação. Eles conseguiram revelar os negativos, porém havia a necessidade de finalizar o projeto. A ideia era conseguir algum financiamento via concursos da Embrafilme naquele começo de 1990. “Aí veio aquele balde de água fria do ‘desgoverno’ Collor pelas mãos de Ipojuca Pontes”. Eles nunca mais conseguiram terminar a produção. “Todo mundo brochou naquele momento. O filme está inacabado até hoje. Eu e o ‘Gordo’ sempre falávamos em retomar, mas o puto resolveu morrer…”, lamenta Pioli. Paulo Friebe faleceu em 12 de maio de 2004, aos 44 anos, vítima de um derrame cerebral.

Outro filme diretamente prejudicado foi O Drama da Fazenda Fortaleza, com direção da cineasta Berenice Mendes. O projeto iniciou em 1988 mas o roteiro já tinha sido escrito em 1980, com a ajuda do escritor Valêncio Xavier e do cineasta Peter Lorenzo, baseado no romance homônimo de David Carneiro, escrito em 1943. Finalizado, o projeto participou de um concurso da Embrafilme. “Ela ia premiar e produzir 20 longas-metragens. Se inscreveram 500 pessoas do país inteiro. Foi uma grande alegria porque, além de poder contar a história, eu era uma realizadora de fora do eixo Rio/São Paulo, num estado sem tradição de cinema e sem ser filha de diplomatas ou banqueiros, que até hoje é quem consegue efetivamente produzir no Brasil”, enfatiza Berenice.

Como a cineasta era iniciante, o seu roteiro seria um dos últimos a ser atendido. Ao longo da década, ela esquematizou o elenco, realizou trabalhos de pesquisa nas locações e de fotografia. As gravações começariam em setembro de 1989, porém, uma tragédia pessoal impossibilitou os planos. Seu então marido, o poeta Paulo Leminski, faleceu no dia 7 de julho. A cineasta procurou a Embrafilme para adiar a produção em alguns meses e ficou combinado do filme ser rodado a partir do dia 10 de março de 1990. “No dia 7 de março o Collor acabou com a Embrafilme”. Berenice nunca mais conseguiu retomar o seu projeto, já que a União não honrou o compromisso. A cineasta tentou conversar com o governo do Paraná, mas não teve sucesso. “Ouvi pessoas dizerem que era muito dinheiro para eu lidar sozinha, que se não existia mais suporte federal, aqui é que não iam colocar dinheiro nenhum em cinema. Eu senti que, por mais que viesse a Lei Rouanet depois, a gente ia levar pelo menos 10 anos para reestruturar os mecanismos de produção de audiovisual no Brasil”.

A cineasta tem razão. O primeiro longa-metragem lançado no país após esse período foi Carlota Joaquina, de Carla Camurati, em 1995. Quando a instabilidade política do governo Collor ficou insustentável, houve uma grande reforma ministerial. Como ele estava “queimado” no meio artístico, resolveu substituir Ipojuca Pontes. Em seu lugar, colocou o embaixador Sérgio Paulo Rouanet, criador da Lei nº 8.313/91, a conhecida Lei Rouanet.

Na realidade, o novo Secretário restabeleceu os princípios da Lei Sarney (nº 7.505), regulamentada em 1986, que concedia o direito de benefícios fiscais em imposto de renda para empresas que patrocinassem algum tipo de manifestação cultural. Essa lei foi proposta quando Sarney ainda era senador em Alagoas, em 1972, mas foi sancionada apenas 14 anos depois.

Outros cineastas paranaenses haviam iniciado seus filmes no final da década de 1980. Gravado em 1988, Vamos Junto Comer Defunto conta a história de um grupo de crianças que tem fascinação em assistir enterros e funerais. “Me inspirei na história de um amigo de infância que morava perto da minha casa. Ele participa também, faz um bêbado que abre e fecha o filme”, explica o diretor Elói Pires Ferreira.

A produção foi pesada: várias locações, elenco e cenas tecnicamente complicadas de gravar. Além disso, o tema não era dos mais politicamente corretos. “Foi um trabalho muito bom. Nós filmamos dentro da Igreja, as crianças espiando o defunto, o primeiro trabalho do Elói com película. Aliás, os padres não gostaram muito desse título, xingaram o Elói”, conta o fotógrafo do filme, Euclides Fantin.

Empolgado com o roteiro e com a produção que se encaminhava (o filme foi rodado em três dias e meio), Elói gastou muito mais do que deveria, incluindo suas economias para comprar um apartamento, na época, aproximadamente 20 mil dólares. “Dava para comprar um apartamentozinho bacana. E eu torrei o dinheiro todo”, conta. Com o filme rodado, ele precisava partir para a finalização, que consiste na revelação da película, montagem e edição das imagens. Utilizou uma moviola do Museu da Imagem e do Som de Curitiba e esperou a verba que havia ganhado, que veio apenas em 1990, um pouco antes de a estatal fechar. “Peguei justamente a pior fase da Embrafilme, a reta final. Com a inflação galopante, o recurso chegou todo defasado. Bancou alguma coisa de laboratório, mas não era suficiente para eu complementar”.

Apesar de todos os contratempos, Vamos Junto Comer Defunto foi selecionado para o Festival de Gramado na categoria curta-metragem. “Torrei minhas economias no filme e nunca mais vi a cor do dinheiro, obviamente. Não deu resultado financeiro nenhum. Mas foi bacana. Passei por uma experiência fantástica, uma verdadeira escola de cinema”, diz Elói.

Outros dois filmes dessa época passaram perrengue para chegar à finalização: Loira Fantasma, de Fernanda Morini, que conta a história de uma famosa lenda curitibana dos anos 1970 – uma loira que pegava um táxi de madrugada e desaparecia – e Lápis de Cor e Salteado, documentário sobre o músico e compositor Palminor Rodrigues Ferreira, dirigido por Nivaldo Lopes.

Como o filme de Fernanda utilizava locações externas e um elenco maior, a diretora foi atrás de diversas empresas e conquistou apoio no que diz respeito a mão-de-obra, estadia em hotéis, restaurantes que forneceram refeições para a equipe e equipamentos emprestados. “É muito mais fácil conseguir coisas para usar na produção do que verba”, compara. Rodaram o filme em 1989 e, quando o dinheiro seria liberado, a estatal fechou. “Foi uma complicação. Os filmes estavam feitos e não tinha nenhuma perspectiva de terminar. Ficaram uns dois anos parados”, conta a cineasta.

Já Nivaldo Lopes, conhecido como “Palito”, escreveu, em 1988, um roteiro sobre o músico e compositor Palminor Rodrigues Ferreira, conhecido como “Lápis”. No ano seguinte, completar-se-iam dez anos de falecimento do artista. “Ele é uma expressão paranaense na música. Fiquei com vontade de fazer um filme que contasse um pouco de sua vida”, explica “Palito”. O problema era, como sempre, conseguir dinheiro para gravar. Então, surgiu o prêmio da Secretaria da Cultura com a Embrafilme, o mesmo que contemplou Elói Pires Ferreira e Fernanda Morini. Palito inscreveu o roteiro e foi um dos ganhadores. No seu caso, o dinheiro veio pela então chamada lei de reserva de mercado, a Lei do Curta.

Lançado em 1990, no Rio Cine Festival, o documentário foi bem recebido pelo público e pela crítica. A finalização teve de ser realizada com recursos não-estatais, já que ele recebeu a verba depois de três anos. “Mesmo antes do fechamento da Embrafilme, o dinheiro já demorava muito pra sair e vinha valendo metade do que na verdade tínhamos ganhado”.

Obviamente, o saldo para o cinema paranaense de 1989 até 1992 não foi nada favorável. Um dos primeiros longas-metragens nunca mais foi retomado e os curtas-metragens lançados eram oriundos do final da década de 1980. Além disso, as políticas estaduais e municipais de incentivo à cultura estavam apenas engatinhando. “Existe uma má vontade em relação à cultura, porque cultura não dá voto. Então, eles dificultam mais do que necessário”, opina Fernando Severo, que em 1991 lançou Desertos Dias, dois anos após a filmagem, justamente por conta dessa lentidão no trâmite de recebimento de verbas.

Benefícios

Sem políticas federais, a classe percebeu a importância de cobrar os governos estaduais e locais para que tomassem para si a responsabilidade de ajudar a disseminar a cultura paranaense. Dentro desse contexto, no começo da década de 1990, duas importantes ações foram responsáveis pela retomada das produções: a criação da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e a fundação da Associação de Vídeo e Cinema do Paraná, a AVEC.

Escrita em 1991 e promulgada em 1993 pelo então vereador Ângelo Vanhoni, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura baseia-se na renúncia fiscal da Prefeitura de Curitiba em até 2% de arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto Sobre Serviços (ISS). Além de contribuir para a produção de filmes, a lei auxiliou pessoas que tinham vontade de trabalhar com o segmento. “Possibilitou o aprendizado e o treinamento de um monte de pessoas. A lei foi e é fundamental na construção da cinematografia paranaense”, ressalta o cineasta Geraldo Pioli.

Fundada em 1992, a Associação de Vídeo e Cinema do Paraná (AVEC) teve como objetivo reunir desde os cineastas mais antigos, que inauguraram a ABD Paraná no início de 1980, até novo produtores. “Ela conseguiu fazer com que várias panelas finalmente se encontrassem sobre o mesmo fogão”, aponta Paulo Munhoz, um dos cineastas que encabeçaram a criação do órgão, provocado a “fazer alguma coisa” pelo colunista e crítico de cinema Aramis Millarch, um dos maiores especialistas na área de cultura, que mantinha uma coluna no jornal O Estado do Paraná.

Em 2004, a Secretaria de Estado da Cultura instituiu o Prêmio Estadual de Cinema e Vídeo pela Lei nº 14.279, que estabelece o valor de um milhão de reais para um projeto de longa-metragem e de três telefilmes. “O fato de o governo ter instituído é histórico e honroso. O Estado deve ser o grande sócio propulsor de cinema junto com a iniciativa privada”, diz Frederico Fullgraf.

No entanto, a dependência quase que total dos governos acaba sendo uma faca de dois gumes para o cinema nacional, que fica refém dos temas impostos pelos editais e é suscetível, pois depende única e exclusivamente do político e de sua boa vontade. “Se o cinema brasileiro fosse independente ou se o Estado contribuísse com a feitura de filmes experimentais, talvez podia vir o Collor que fosse que a gente continuaria a fazer cinema no Brasil”, considera Geraldo Pioli.

Enquanto o cinema continua lutando para se consolidar após períodos críticos, o que vale, principalmente para esses cineastas do Paraná, é a paixão em se fazer filmes. “Com Estado ou sem Estado, o meu estado de espírito para fazer os meus trabalhos vai continuar. E creio que muita gente pensa da mesma forma. É muito difícil você ficar esperando que, do ponto de vista oficial, tudo aconteça com rapidez”, acredita Beto Carminatti.


Isadora Raquel Rupp é jornalista formada pela Universidade Positivo e pós-graduanda em Comunicação e Cultura pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Integra a equipe da revista de cinema Juliette e é autora do livro Amor na Era Collor. O Cinema Paranaense da Geração 1980, ainda sem publicação oficial e do qual foi retirado o texto deste artigo.

A Pesquisa de Cinema em Mato Grosso: Fontes, Referências e Acervos – Uma Experiência

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 2 Comentários

por Luiz Carlos de Oliveira Borges

"Pantanal de Sangue"

O Estado de Mato Grosso tem sido apontado como referência no Brasil, onde a trajetória do cinema brasileiro na região conseguiu formar um novo campo de conhecimento adquirido a partir da recente publicação, em 2008, da pesquisa Memória e Mito do Cinema em Mato Grosso, de minha autoria, editado pela Editora Entrelinhas. Grande parte deste mérito se deve a abordagem e tratamento do tema, em que a partir do interesse e estudo da obra e as contribuições de um cineasta estrangeiro ao desenvolvimento do cinema brasileiro – o sueco Arne Sucksdorff – se promoveu um inventário e o testamento do cinema produzido na região. Desta forma, inseriu-se o cinema mato-grossense em importantes discussões do cinema, em especial no que diz respeito ao documentário. Tamanha repercussão confere uma imensa responsabilidade à pesquisa publicada e por consequência implica também no surgimento de paradigmas inerentes ao campo de conhecimento em processo de formação como também à pesquisa propriamente dita.

No plano geral há que se perguntar: até que ponto uma pesquisa isolada pode contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade, ou mesmo uma única instituição, e neste caso se tornar referência? Questão que desenvolverei adiante, a partir de problematizações de caráter específico da pesquisa em pauta que, a meu ver, ilustram e elucidam melhor a relação proposta e os caminhos percorridos desde a sua realização.

O primeiro ponto a ser considerado se trata da organização das fontes e referências – a documentação propriamente dita. Tanto as de natureza secundária – as publicações e demais documentos – quanto as de natureza primária: neste caso, os filmes e seus acervos.

O segundo ponto é referente ao método e às escolhas de sua abordagem, no que diz respeito ao tema e também a suas fontes e referências.

Para pesquisadores provenientes de áreas acadêmicas, cuja pesquisa científica ocupa um papel maior na formação, como por exemplo, nos cursos de História, Ciências Sociais, estas questões podem ser tratadas de uma forma mais natural. Mas para uma infinidade de pesquisadores provenientes de outros campos, como é meu caso, tais questões podem ser aterradoras e mortificantes em sua primeira abordagem.

Se não vejamos. Em 1988, quando iniciei a preparação das bases referenciais para elaboração do mencionado projeto sobre o cinema, deparei-me com um universo de informações dispersas e repleto de lapsos temporais, onde o presente e o passado pareciam instâncias inarticuláveis. Neste quadro, constituíam-se exceção as publicações Alma do Brasil e Esboço Histórico do Cinema em Mato Grosso, de José Octavio Guizzo, precursoras da construção da memória do cinema na região. Uma contribuição capital, porém vinculando o passado cinematográfico mato-grossense à iconografia do Mato Grosso do Sul. Guizzo, através do cinema, iniciava a difícil e obsessiva tarefa de construção das raízes da cultura de um novo Estado formado a partir de sua divisão territorial promovida pelos interesses políticos regionais, mas principalmente pela política do regime militar.

Em que pese a escassez das informações sobre o cinema em Mato Grosso, o acesso às sua fontes era tão pouco facilitado. Estas se encontravam espalhadas nas bibliotecas e acervos do país, em especial nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. O que serve de alerta aos pesquisadores, o longo e difícil percurso para acessar a documentação original do cinema em Mato Grosso. O péssimo estado em que muitas destas se encontravam impõe a necessidade de uma urgente reedição das publicações, em especial, as acima mencionadas de Guizzo. Neste ponto, cabe esclarecer que a memória do cinema no Estado, oriunda da mencionada pesquisa, foi de certa forma um acidente de percurso do projeto original. Isto porque, quando me ingressei no programa de Mestrado da Pós-Graduação da Escola de Comunicação e Artes da USP, sob orientação da Prof. Dra. Maria Rita Eliezer Galvão, o tema original era a figura do cineasta Arne Sucksdorff, a sua passagem pelo cinema brasileiro, a defesa do meio-ambiente expressa na preservação e conservação do Pantanal Mato-grossense e as contribuições de sua esposa Maria Graça de Jesus Sucksdorff.  Porém, quando da minha primeira entrevista com a orientadora, apareceram as primeiras dificuldades à proposição inicial.

Havia a restrição à inserção de Arne Sucksdorff em Mato Grosso, uma vez que pouco, ou quase nada, se conhecia sobre o cinema na região, exceto o que foi publicado nas escassas fontes anteriormente mencionadas. Portanto, a questão das fontes de pesquisa, ou seja, a ausência delas sobre o cinema no Estado, impedia o cumprimento do projeto. Deveria ser adequado, o que provavelmente teria sido mais fácil, ou retornava ao estado e buscava outras fontes para a  construção do conhecimento da memória do cinema.

As fontes e referências para a pesquisa do cinema no estado se colocavam como condição primordial para sua continuidade! Poderia ainda optar pela realização de uma pesquisa oral, caso contrário se buscasse outras fontes. O primeiro caminho foi descartado, dado o período da pesquisa: 1886, da primeira sessão em Paris, a 1970, quando da chegada de Sucksdorff ao Estado. Um período histórico desta monta exigia outro tipo de fonte. Não só pela dificuldade de encontrar depoentes vivos, mas dada a necessidade de um rigor mais sistêmico na análise, não tão suscetível a lapsos de memória, ou até mesmo, a tendência de todo depoente a por vezes supervalorizar suas contribuições/rememoração como forma de se inserir na história. Portanto, a ausência de fontes e conhecimento anterior não permitia um recorte no período porque inviabilizava o estabelecimento das conexões de temporalidade propostos: o passado e o presente. A pesquisa oral, porém, seria utilizada em outro momento, com os alunos do curso, sobre um tempo mais próximo – os anos sessenta.

A esta altura, se apresentavam como uma importante fonte de documentação, ainda que secundária, os arquivos da imprensa mato-grossense depositados no Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal de Mato Grosso (NDHIR/UFMT) – com documentos em razoável estado de conservação e acessibilidade. Quando em contato com esta fonte, a questão do método, neste caso o historiográfico, se colocava de forma mais reveladora. A documentação da memória da imprensa mato-grossense apresentava inúmeras lacunas no período pesquisado, tornando impossível qualquer rigor e não permitindo outro tratamento metodológico que não o do recorte indiciário.

A utilização de uma fonte de ricas informações, como a imprensa, coloca algumas questões à pesquisa. A primeira delas é o surgimento de um universo extraordinário de informações que causam ao pesquisador uma vertigem num primeiro olhar. Assuntos diversos surgem referentes à política, economia, crônica social, artigos, anúncios publicitários, dentre outros, o que permite um amplo conhecimento de uma época, porém torna difícil a decisão de quais informações reter. O outro é de natureza da veracidade do conteúdo das informações. O fato registrado tem diversas naturezas, a de relatos, a de opiniões, e por vezes discursos adequados ou não aos interesses editoriais. Questões estas que se não invalidam sua utilização, todavia implicam em cautela.

Desta forma, uma vez conhecida a trajetória do cinema no Estado, o cineasta Arne Sucksdorff e sua esposa Maria poderiam ser situados em seu tempo com suas contribuições devidas e assim a pesquisa poderia ser concluída em seu projeto original, o que acabou ocorrendo em 1990 e resultou em três volumes da mencionada coleção: Memória do Cinema em Mato Grosso, Mito do Cinema em Mato Grosso e Filmografia do Cinema em Mato Grosso.

Uma pesquisa embora não publicada encontra caminhos próprios. Até que ponto ela transforma e instrumentaliza a vida de quem a produz e também de uma sociedade? O que se segue trata de uma digressão acerca de uma rememoração inédita que realizo sobre um período posterior ao pesquisado, a partir dos anos 1990, o que pode ser compreendido como um testemunho pessoal de uma vivência na tentativa de reinserção do cinema na memória social de uma sociedade tendo por referência a realização de uma pesquisa científica.

Enquanto aguardava sua publicação, os resultados da pesquisa forneceram um importante lastro e direção ao desenvolvimento de um conjunto de ações que resultou num período de maior efervescência do cinema em Mato Grosso. No meu retorno à região, em 1990, em minha bagagem trazia as ricas informações prospectadas e o projeto de um filme que eu havia desenvolvido por ocasião de uma oficina de cinema, a Oficina 3 Rios da Secretaria de Cultura daquele estado. Tantas Águas… Tantos Homens, um média-metragem de ficção, trata dos momentos difíceis dos expedicionários da Expedição Langsdorff em sua passagem por Mato Grosso. Nesse período a única referência sobre o cinema em Mato Grosso era a produção comercial de Hollywood, que chegava com atraso nas duas únicas salas em funcionamento precário em sua capital: o Cine Bandeirantes e o Cine Teatro Cuiabá.

O circuito alternativo do Cine Clube Coxiponés da UFMT, neste momento sob o comando de Clovis Resende de Matos e Epaminondas Carvalho, desde sua criação em 1977 oferecera uma regular exibição de filmes de arte de diversas cinematografias em 16 milímetros,  no momento encontrava- se reduzido. Este ambiente contribuía para impor aos mato-grossenses um sentimento de impossibilidade de produzir filmes na região! Até mesmo os poucos profissionais do audiovisual que atuavam no mercado – em sua maioria voltados para as produções de televisão e publicidade – produzir filmes na região era uma utopia. O que não impediu o surgimento de importantes experiências estéticas em vídeo e que ocupavam, ainda que de forma pequena, um espaço na grade de programação das televisões que veiculavam produções regionais, conceito este que nem exista naquele momento.

O silêncio de referências sobre o cinema no estado começa a ser quebrado nos anos 90, quando aparece em 1992 na cidade de Campo Grande – MS o livro História de Vida, organizado por Maria da Gloria Sá Rosa, Adélia Maria Rodrigues e Idara N. Duncan, editado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. As organizadoras dedicam um capitulo à memória do cinema quando o Mato Grosso ainda era uno.

A questão da divisão política do estado não consegue apagar a memória de sua história em comum e implica em mais uma questão a ser resolvida pelos pesquisadores. Ainda neste estado, em 1996, Marta Guizzo, viúva de José Octavio Guizzo, falecido em 1988, consegue publicar uma pesquisa que seu marido levara 17 anos para concluir. Glauce Rocha, Atriz Mulher Guerreira, editado pela Hucitec, uma biografia da enigmática e talentosa atriz mato-grossense. Neste mesmo ano em Cuiabá, Aníbal Alencastro publica Anos Dourados dos Nossos Cinemas- Antigas Salas de Projeções de Mato Grosso, editado pela então recém-criada Secretaria de Cultura deste estado. Alencastro, a partir de fontes orais e documentos, narra de forma vivaz a história das salas de cinema de Cuiabá. Anos mais tarde, em 2003,  Alencastro retornaria às suas rememorações sobre o cinema na região com a publicação de Cuyabá, Crônicas e Lenda, no qual dedicou um pequeno capítulo intitulado “Primeiros Cinemas”. Ainda que convidado por Alencastro para fazer a apresentação de seu primeiro livro, o que me marcou pela sua deferência, a atividade de pesquisador não me parecia animadora.

Optei em continuar o projeto de produção do filme apresentando-o à administração superior da UFMT, que preferiu não apoiar alegando se tratar de um investimento arriscado cujo retorno seria em médio prazo. Foi quando decidi realizar uma exposição de arte na recém-inaugurada Galeria Pádua, na Getúlio Vargas, desconstruindo o processo de realização do cinema e, neste caso, fornecendo as referências científicas da pesquisa do roteiro do filme. O recado fora dado e o apoio da UFMT aconteceria por outra via!

Entusiasmado com o cinema, o professor Abílio Camilo Fernandes decidiu investir no projeto, através do programa UNESTADO, financiando a capacitação de agentes locais através do Núcleo de Cinema. O curso trouxe a Cuiabá a experiência de importantes profissionais do cinema brasileiro: Carlos Reichenbach, Denoy de Oliveira, André Prata, produtor do filme, Débora Ivanov, Eduardo Santos Mendes, Dib Lutfi e Eduardo Leone. A realização causou enorme movimentação em Cuiabá e resultou na produção de três curtíssimas metragens, de um minuto cada, porém realizados em 35 milímetros. Olhos, Luz e Espelho era uma livre interpretação da poesia de Augusto dos Anjos. Desta oficina participaram Ana Paula Pinto Duarte, Vincent Arnaud, Nicélio Acácio, Lucia Palma, André Nishizaki, Rodrigo Agnolon, Carla Cartocci, Douglas Ronchi Filho, Cassiano Pires, Wagton Douglas, Leonie Vitório, Justino Astrevo, Sandra Laerte, Mara Ferraz, Fernando Castrillon, Maria Cândida Ferreira e Almeida, Lucia Palma e Marcos Vergueiro. Os atores foram Wagton Douglas, Vera Capilé e sua filha Juliana, Douglas Ronchi Filho, Carla Cartocci e, na figuração, a participação de Naire Cartocci Borges. Os filmes foram selecionados e apresentados no Guarnicê Cine-Vídeo, um dos importantes e antigos festivais de cinema brasileiro realizado em São Luís, no Maranhão e na cidade de Cuiabá por ocasião da Mostra Brasileira de Cinema e Vídeo de Cuiabá que surgiria em seguida.

Tomados pelo entusiasmo, os jovens participantes da oficina, ao seu encerramento, decidiram transformar a experiência numa associação, que se chamaria Núcleo de Cinema de Mato Grosso. Em frente desta associação, promovemos a abertura de um circuito de exibição de filmes de arte no Cine-Teatro Cuiabá, sala com capacidade para 600 espectadores, e outra menor com 109 lugares. O cinema, um belo patrimônio histórico de propriedade do estado, encontrava-se arrendado a um exibidor particular, Walter Furtado, que anos mais tarde o entregaria totalmente destruído, e que permanece fechado por mais de 15 anos.

Uma rica e contemporânea produção de filmes foi organizada sob o título Chuva de Cinema, uma menção ao prazer que os mato-grossenses têm com a chuva, e se realizava todas as terças-feiras, às 22 horas, única sessão cedida pelo exibidor, ainda assim na sala menor. O filme de estreia foi Asas do Desejo, de Wim Wenders, e apesar de ser num dia de semana, num horário tão tarde, apareceram cerca de 350 espectadores. Isto motivou a realização de uma segunda sessão iniciada à 1 hora da madrugada, que permaneceu lotada, assim  como nos filmes subsequentes.

Em que pese a agitação no setor de difusão de filmes, a pesquisa permanecia sem publicação e o projeto do filme teve que ser interrompido porque a produção que iniciara em São Paulo não obtivera, em Mato Grosso, os recursos necessários, entre estes a indispensável remuneração da equipe. Era preciso fazer com que a atividade pudesse gerar rendas e postos de trabalho, única forma de estimular e iniciar a construção ainda que incipiente de um mercado de produção de filmes na região.  É importante lembrar que, naquele momento, não existia um mecanismo de fomento, o que motivou a luta pela sua criação e a aprovação, na Assembleia Legislativa do Estado, do projeto de um fundo de fomento para a atividade, o FUNCINE, de autoria da então deputada Serys Selesharenko, e anos mais tarde da Lei de Incentivo à Cultura – Hermes de Abreu. O fundo nunca foi implementado; a lei teve uma melhor sorte.

A questão que se colocava naquele ambiente não era apenas realizar um único filme. Era preciso torná-lo mais favorável ao desenvolvimento do cinema! O que veio acontecer com a mudança na administração superior da UFMT.

"Alma do Brasil"

Recém-nomeada Coordenadora de Cultura, a professora Marina Muller de Abreu Lima me convidou para assumir a supervisão do Cine Clube Coxiponés, quando promovi a reestruturação de suas atividades, tanto no que diz respeito à difusão, como à possibilidade de constituição de um acervo fílmico na região. Como primeira atividade frente à supervisão, a qual dirigi por oito anos, organizei uma mostra de filmes chamada Retrospectiva do Cinema Mato-grossense, passo importante para iniciar o resgate da memória do cinema regional.  Nesta mostra, do passado constava apenas um único filme que se tinha disponível à época nos arquivos brasileiros, o clássico Alma do Brasil, de Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes, de 1936. Do presente, constavam apenas os curtas-metragens oriundos do Núcleo de Cinema.  De forma adicional à mostra, foi exibida outra sobre a recente produção de curtas-metragens paulistanos chamada Cinema Cultural Paulista. Organizada pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo e produzida pelo cineasta Francisco César Filho, para sua realização vieram a Cuiabá os cineastas Tata Amaral e Joel Pizzini. César Filho e Tata Amaral retornariam anos mais tarde para ministrar um curso de produção cinematográfica, que resultou na iniciação e surgimento de novos nomes na produção do estado, entre eles Bruno Binni, Keiko Okamura, Julio Bedim, Luciana Prieto e Rômulo Fraga.

Retornando à mostra, para sua realização uma cabine de projeção 35 mm de propriedade de José Luis Almeida foi trazida de São Paulo e instalada no auditório da Escola Técnica Federal – ETF.  Após a exibição dos filmes sucedeu uma palestra proferida pelos professores convidados do curso de História da UFMT, Carlos Bertolini e Luis Galleti. Diante do prestígio conquistado, consegui convencer a administração superior da UFMT a iniciar o processo de aquisição do acervo cinematográfico de Lázaro Papazian, o primeiro que a minha pesquisa apontava como existente ainda no estado. O acervo encontrava-se guardado na residência de seu filho Gonçalo Papazian. Eram centenas de latas de filmes em super 8, 16 milímetros; milhares de fotografias expostas à umidade e calor, tudo acondicionado ainda em embalagens inapropriadas: sacos plásticos e latas de ferro. Assim encontrava-se o legado de Lázaro Papazian à memória dos mato-grossenses: num avançado estágio de degradação. Através de uma portaria, a reitora, Prof.ª Luzia Guimarães, instituiu uma comissão formada por técnicos e especialistas para avaliar e adquirir o acervo para a universidade. Desta participaram a Prof.ª Kátia Meireles, representando o Departamento do curso de Comunicação; Edson Alves Viana, da Coordenação de Material; Arydes Aires da Costa, da Procuradoria Jurídica; e eu, representando o Cineclube.  Processo este que se arrastou por dois anos, dada as dificuldades em reunir todos os herdeiros, seus filhos e principalmente a obtenção de um consenso entre eles no que diz respeito ao valor do acervo.

O equivalente a 20 mil dólares foi a quantia final acertada. Assinado o contrato de aquisição, no dia 25 de abril de 1994 o acervo de Lázaro Papazian foi removido para o Cineclube. As 178 latas de filmes foram prontamente enviadas para a Cinemateca Brasileira em São Paulo, para dar início aos procedimentos de conservação e  a transferência das imagens para o vídeo VHS.  Assim poderíamos assistir e identificar o seu conteúdo e priorizar o restauro. O Cineclube não possuía instalações adequadas para receber o acervo. Na ocasião estava instalado no prédio da reitoria, anexo à Biblioteca Central, onde as fotografias tiveram que ser guardadas provisoriamente.

O convênio firmado com a Cinemateca Brasileira resultou na vinda a Cuiabá da museóloga e restauradora Fernanda Coelho para orientar os procedimentos de conservação e preservação das fotografias e adequação de uma nova instalação. Na oportunidade, Fernanda Coelho ministrou o curso Introdução à Preservação, Conservação de Acervo Foto-Cinematográfico, realizado no auditório do INSS pelo fato da universidade estar em greve.

O objetivo do curso era treinar os servidores do Cineclube, porém foi aberto a  toda a comunidade da capital do estado. Pela primeira vez se reuniram pesquisadores do Arquivo Público do Estado, Assembleia Legislativa, Museu da Imagem e do Som de Cuiabá, os técnicos dos acervos dos jornais e televisões da cidade, entre estes Aníbal Alencastro, Isis Catarino, Sofia Amiden, Edewiges Maria Villá.

Encerrada a capacitação, começaram as adequações da parte da antiga Casa dos Estudantes, que levou meses. Porém, fomos surpreendidos no momento seguinte após a entrega das chaves: descobrir que não abria a porta de entrada da área reformada.  A euforia em instantes se tornou uma decepção! Soubemos mais tarde que, sem nos comunicar, a administração da UFMT havia dada outra destinação ao espaço e instalado o PCBAP  - Programa de Conservação da Bacia do Alto Paraguai. Trabalho perdido, recurso público jogado fora!

O acervo retornou para o prédio da Biblioteca, ao lado do Cerimonial, onde meses depois uma funcionária deste órgão deixou uma máquina de escrever ligada após o encerramento do expediente. Nesta madrugada, o superaquecimento da máquina iniciou um grande incêndio no prédio, que se alastrou invadindo a sala onde se guardavam as becas dos formandos, por fim, atingindo o acervo que ficava na divisória seguinte.

Mais de cinco mil fotos foram queimadas, por sorte os filmes não tiveram o mesmo destino. Naquele momento, todos os funcionários do Cineclube entraram em comoção, alguns choravam de indignação e vergonha, as televisões e jornalistas querendo informações, os bombeiros apagando focos do incêndio. Aquilo parecia um pesadelo! Uma comissão de sindicância foi instaurada e constatou a versão acima exposta.

A origem do acervo, sua condição e a sua incorporação ao patrimônio da UFMT aparece somente agora em primeiro lugar porque não constava das publicações subsequentes sobre o acervo, nem mesmo dos documentários realizados sobre Lázaro Papazian. Em segundo porque, quando em  função da publicação da minha pesquisa, a editora Maria Tereza Carracedo, que desconhecia esta versão e ficara surpreendida, me relatou outra que era comentada entre as autoridades e intelectuais mato-grossenses: o incêndio ocorrera porque algum funcionário do Cineclube tinha deixado um cigarro de maconha aceso. Versão esta que, além de imaginosa, é reveladora mais uma vez do tratamento dispensado ao cinema em Mato Grosso. Além do descaso, agora o preconceito.

Anos mais tarde, o Cineclube foi transferido para o prédio do novo Centro Cultural da UFMT, mais uma instalação inadequada, onde o acervo sofreria mais um ataque, o das chuvas.

Era um paradoxo o tratamento que a administração de uma instituição de ensino e pesquisa como a  UFMT dispensava a este acervo. O que para ela acabou se transformando num grande problema e, em 2007, decidiu presentear a Prefeitura de Cuiabá com sua doação, no dia do aniversário da cidade, acreditando se livrar de sua responsabilidade. Mesmo que tenha sido avisada deste absurdo.

Quando se pensa em um museu, a primeira coisa que vem em mente é a existência de um acervo guardado em condições adequadas para sua conservação e preservação; em seguida, um corpo de pesquisadores e técnicos para gerar conhecimento sobre o acervo; por último, que este possa ser exposto ao público. Nenhuma destas condições ocorrem no recém-criado Museu da Imagem e do Som de  Cuiabá – MISC, ao qual se adicionou o nome do cinegrafista armênio e seu acervo. O local de acondicionamento e a sua gestão são inadequados e constituem-se como uma ameaça à memória dos mato-grossenses.

Mas nem tudo parece desolador em se tratando do cinema em Mato Grosso. Ainda que a constituição de acervo pelo Cineclube não tenha frutificado na UFMT, por outra via, nesta mesma instituição, de forma simultânea, iniciava-se uma ação que seria responsável por um dos mais importantes momentos vividos do cinema em Mato Grosso, inclusive no que diz respeito à sua memória e a sua pesquisa. Em 1993, através do convênio Pluripartite, o de número 001/93 entre a UFMT, Governo do Estado, Prefeitura de Cuiabá, Federal das Indústrias e SEBRAE-MT,  nasce a Mostra Brasileira de Cinema e Vídeo de Cuiabá, que mais tarde foi transformada no Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá.

A sua realização aconteceu num difícil momento do cinema brasileiro, pois a produção encontrava-se em plena recessão e os produtores iniciavam o que mais tarde se chamou de retomada. Focado no eixo difusão-produção-ensino-memória, o festival contribuiu com o ressurgimento de importantes nomes do cinema do país e da região escolhendo-os como seus homenageados. Lázaro Papazian foi o primeiro, depois se sucederam Vicente Leão, Arne Sucksdorff, o pesquisador Saulo Pereira de Melo, Jose Mojica Marins, Andrea Tonacci, entre outros. Esta rememoração através das homenagens, ainda que pequena e parcial, preenchia uma importante lacuna, uma vez que a  pesquisa Memória e Mito do Cinema em Mato Grosso permanecia inédita. Por outro lado, o Festival de Cinema estimularia também a retomada da produção de filmes na região, período este que conceituo como “Lufada” do cinema mato-grossense – uma alusão ao momento em que os peixes migram naturalmente em direção à luz.  Da mesma forma, naturalmente, a produção acontece por única e exclusiva vontade e esforço de seus produtores e realizadores, sem uma política pública para o setor.

Deste período surgem novos nomes no cinema no estado: Amauri Tangará, Luiz Borges, Marcio Moreira, Bruno Binni, Valéria Del Cueto, Gloria Albuês, que através de diversificados filmes exibidos em importantes festivais dos país e do mundo levaram notícias alvissareiras da produção de cinema em  Mato Grosso.

O Festival também estimulou a vinda de produções brasileiras de longa metragem ao estado, que se constituíram como verdadeiras universidades para estudantes e iniciantes produtores locais. Hermano Penna ( Mario – 1997), Joel Pizzini (Enigma de um Dia – 1996; 500 Almas – 2004), Sergio Bianchi (Cronicamente Inviável - 1999), Toni Venturi (Latitude Zero – 2001),  Paulo Thiago (O Vestido – 2004) e recentemente Geraldo da Rocha Moraes (O Homem Mau Dorme Bem – 2007) revelaram ao país as diversificadas e originais locações de Mato Grosso. O sucesso deste período promovido pelo Festival em grande parte foi motivado pela Lei de Incentivo à Cultura do Estado de Mato Grosso, na qual a AMAV se destacou na luta pela sua criação. Em dez anos de existência, a Lei se tornaria referência e exemplo ao país com diversas publicações em revistas nacionais.

O Festival sempre foi um espaço que acolheu e articulou de forma democrática a política dos produtores locais, dos produtores brasileiros, e no que diz respeito ao nosso assunto, a dos pesquisadores do cinema brasileiro. Do Festival nasceu a primeira organização cível de produtores de Mato Grosso – a AMAV, o projeto do Polo Audiovisual Arne Sucksdorff, o decreto de produto de exceção cultural do cinema brasileiro, entre tantas outras iniciativas.

Não me deterei mais na questão do referido festival, assim como no Cineclube Coxiponés, e ainda no  projeto do polo de cinema por considerar que merecem  estudos específicos. Sua menção, ainda que superficial, tornou-se necessária por se tratar de campos interligados e indissociáveis sobre a pesquisa do cinema no Estado. Território este que volta a se animar com a publicação do livro Cuyabá na Lente do Foto Chau – Um Resgate Cinematográfico, de Marcio Moreira, edição do autor, no ano de 2000. O livro trata do acervo de Lázaro Papazian, com a descrição do conteúdo dos seus filmes realizada quando a nosso convite o autor estagiou no Cine Clube Coxiponés.

O cinema é uma arte que em Mato Grosso ainda carece de uma melhor compreensão, tanto no que diz respeito à sua complexa cadeia produtiva, como também no que diz respeito à obra cinematográfica e sua linguagem, e principalmente à pesquisa do seu conhecimento.  No que diz respeito a sua relação com esta sociedade, acredito que contribuem de forma considerável para o seu atraso a inexistência de políticas públicas e, principalmente, de instituições que as internalizem em suas estruturas. Para que as contribuições dos indivíduos sejam incorporadas e transpassem o território da pessoa, para que rompam definitivamente as formas provincianas da qual se originaram e galguem uma etapa verdadeiramente moderna.

Mesmo diante da ausência de políticas, programas ou mesmo linhas de pesquisas de conhecimento para o cinema em Mato Grosso, um tipo de pesquisa floresceu de forma quase que espontânea na UFMT.  Foram os trabalhos de conclusão de curso de graduação, os chamados TCC, dos estudantes da Comunicação e de outras áreas. Já sabia de suas existências quando fora convidado por Andréia Viggo, aluna do curso de Comunicação Social, e que trabalhava na produção do festival, para orientar sua conclusão de curso, em 2002, que resultou na pesquisa A Indústria do Audiovisual – Um Estudo Comparado, uma Proposta para Mato Grosso. Este trabalho deu uma importante contribuição para a formatação posterior do mencionado projeto do Polo Audiovisual Arne Sucksdorff.

Para a presente publicação realizei uma rápida e superficial prospecção nas bibliotecas setoriais e na Biblioteca Central da UFMT para tomar um primeiro contato com esta produção.

O primeiro TCC de que se tem registro na UFMT aparece em 1997. Com o tema Invasão dos Quadrinhos no Cinema, Antonio de Oliveira Costa Neto e Joubert Lobato Evangelista, que promovem um inventário histórico do surgimento da relação entre a arte sequencial e os filmes, ainda realizam uma abordagem semiótica sobre o surgimento dos heróis e seus mitos. Os autores fizeram um cuidadoso levantamento sobre os personagens das histórias em quadrinhos, o seu surgimento e proliferação a partir da grande depressão americana de 1929.

Dois anos mais tarde, a dupla de alunos Ana Paula Santana e Jussara Ormond produzem uma inovadora e original pesquisa sobre a produção contemporânea de filmes em Cuiabá. Com o título de A Produção Cinematográfica em Cuiabá – Década de 90, documentam a produção do período e através de entrevistas com o público avançam sobre a significação da recepção das obras produzidas.

Em 2002, Juliana Cristina Curvo realiza uma pesquisa aplicada tendo como referência um ícone do cinema brasileiro, A Estética da Fome e o Uso da Estética – O cinema de Glauber Rocha na TV. Neste mesmo ano, Cintia Helena Tunes, em Luz… Câmera..Há som: a Música no Cinema, apresenta um lado ainda não explorado pelas pesquisas anteriores: a técnica cinematográfica. A autora escolheu o rico universo do som no cinema e promoveu um razoável levantamento bibliográfico sobre seu desenvolvimento tecnológico e sua aplicabilidade.

Parceiro nas primeiras edições do Festival de Cinema e Vídeo de  Cuiabá, quando coordenava as mostras de vídeo, Menotti Reiners Griggi, para conclusão do curso de Letras, apresenta um estudo sobre a semiótica no cinema intitulado  O Olhar que Transpassa ou a Dualidade do Olhar.

Com temas diversos e muitas vezes desconexos, o que demonstra claramente a inexistência de uma linha de pesquisa para o cinema na UFMT, de forma espontânea os TCC vão se proliferando, o que reforça a sua relação direta com o campo de interesse formado a partir do surgimento do  Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá. Ainda em 2002, Aretusa Keiko Rondon Tanaka, em Vídeo Integração: uma Alternativa para a Importância do TCE Estudantil, se volta para o formato do vídeo institucional aplicado a aspectos da realidade de seu trabalho no Tribunal de Contas do Estado. No ano seguinte, Diego Baraldi de Lima, que estagiava no Cineclube Coxiponés e participava da produção do Festival de Cinema, estimulado por este novo ambiente, apresenta A Lei Estadual de Incentivo à Cultura e a Produção Audiovisual em Mato Grosso,  em que promove um levantamento da produção estimulada pela criação do mecanismo de fomento do Estado; onde também investiga se o público local tem tido acesso aos curtas-metragens produzidos, bem como a maneira como este público gostaria de ter acesso a estes produtos. Mesclando importantes aspectos da cadeia produtiva do audiovisual, o fomento, focando em questões anteriormente levantadas por Ana Paula Santana e Andréia Viggo, Baraldi  amplia importantes aspectos das pesquisas anteriores.

Em 2004 aparece mais uma pesquisa aplicada sobre o cinema em Mato Grosso, desta vez voltada para a educação. A dupla Aliana França Camargo e Cristiano de Souza, em Cinema-Agora: Educação e Cidadania Através do Audiovisual, estuda e documenta a formação do acervo de imagens da SEDUC, Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso. Formado de 546 programas, em sua maioria produções do Vídeo-Escola da Fundação Roberto Marinho, os autores problematizam aspectos da utilização do acervo e seus conteúdo no desenvolvimento da educação.

Em 2005, Daniella Martins Cavalcante e Isabelle Rodrigues realizam o trabalho intitulado Aproximação da Publicidade com o Cinema – Análise das Linguagens e Estratégias Comunicativas. No mesmo ano, Haroldo Arruda Jr. apresenta Shrek 2 e a Semiótica: Percurso Analítico do  Filme Shrek 2 à Luz da Semiótica do Filósofo  Americano Charles Sanders Peirce. A pesquisa apresenta o percurso analítico das linguagens do filme e um estudo das interpretações geradas pelos signos inerentes – sua repercussão na recepção dos conteúdos imagéticos. Com o tema História e Memória do Cinema, Anderson Alves Jorge promove uma rememoração do cinema e das primeiras salas em Cuiabá, uma compilação de tudo o que fora publicado sobre o assunto.

Em meio aos trabalhos de conclusão de curso aparece uma primeira dissertação de mestrado, na qual o cinema é tratado com maior profundidade, de acordo com o tema proposto. Luiz Diogo Vasconcelos Jr., em Cultura, Cinema e Violência na Contemporaneidade, promove uma interessante investigação sobre as relações culturais entre a violência simbólica e de conteúdos, priorizando o cinema e a televisão, e tendo os filmes Olga, de Jaime Monjardim, e O Invasor, de Beto Brant, como referência de sua análise. No trabalho, o autor elucida e problematiza de forma muito clara um vínculo muito antigo existente entre o cinema brasileiro e a televisão.

Ainda neste ano, 2005, o videoclipe foi o tema da pesquisa de conclusão de curso de Carlos Alexandre Salvatore, A Evolução do Videoclipe, os Valores Agregados e sua Disposição como Material de Divulgação. O autor da pesquisa analisa o videoclipe A Lua, da banda mato-grossense Kaiamaré.

No ano seguinte, a relação entre cinema e educação em Mato Grosso volta a ser tema de um trabalho de conclusão do curso de Comunicação. Desta vez, Nariel Iatskiiu Lozano, em O Cinema como Ferramenta para Educação, apresenta o projeto de difusão audiovisual Cinema Circulante, realizado pela AMAV, tido como um processo educacional na medida em que atua para a construção do conhecimento através da linguagem cinematográfica. Realizado a partir de uma experiência desenvolvida pelo Festival de Cinema com os assentamentos da empresa Furnas, na Usina Hidrelétrica do Manso, o projeto foi absorvido pela  AMAV e o Cine Clube Coxiponés, que deram continuidade por anos subsequentes.

O documentário produzido na região foi o objeto de análise do TCC de Ana Claudia Simas e Wanessa Prado Souza  em Documentário em Cuiabá: Aspectos Históricos e da Produção Atual. Diego Baraldi de Lima retorna ao campo de investigação científica, desta vez no território da semiótica, com a pesquisa Terra para Rose: Cinema, Representação e Testemunho. Baraldi se propõe a uma análise do discurso cinematográfico presente no documentário Terra Para Rose, de Tetê Moraes, tendo por referência a semiótica peirceana e os escritos de Jacques Aumont acerca da sintaxe cinematográfica. Ainda neste ano, 2006, o mesmo autor apresenta a sua dissertação de mestrado O Cinema Mato-grossense dos Anos 90: Entre o Local e o Global, analisando de forma detalhada a iconografia presente no curta-metragem mato-grossense A Cilada com Cinco Morenos, de minha direção, e problematizando questões referentes à construção de uma identidade cultural  na produção dos filmes mato-grossenses.

Com uma produtividade acadêmica de alto nível, atualmente como programador de filmes, Diego Baraldi se destaca na reflexão sobre o cinema em Mato Grosso, o que me motivou a convidá-lo em  2006 para desenvolvermos um projeto de Pós-Graduação em Audiovisual no Departamento de Comunicação da UFMT, onde ele trabalhava como professor visitante. A iniciativa resultou num projeto inovador que infelizmente até o momento não foi implementado.

Neste mesmo período, outra Pós-Graduação foi realizada em Mato Grosso. Meses mais tarde a AMAV-ABD, em parceria com a UNIC, Universidade de Cuiabá, com coordenação pedagógica do cineasta e professor Joelzito Araújo, mobilizou mais de 50 alunos e grandes nomes da produção do cinema brasileiro para a região. Porém sua realização não teve resultados positivos para a pesquisa do cinema na região, que sequer fez parte da grade curricular. Os alunos foram dispensados de apresentar monografias, ou seja, produzir conhecimento, ao final do curso, desde que apresentassem projeto de desenvolvimento de curtas-metragens para serem colocados nos editais de fomento do Fundo Estadual de Cultura.

Ainda que a pesquisa de cinema e a constituição de acervos em Mato Grosso se deram de forma difícil e incipiente, no estado vizinho, o Mato Grosso do Sul, encontraram melhor sorte. O acervo de quase 70 filmes do aquidanauense Décio Correia de Oliveira encontra-se em fase de restauração por uma iniciativa cidadã, em parceria com a Petrobras; o MIS-MS começa a organizar o acervo de mais de 70 filmes de David Cardoso, e o acervo de Reynaldo Paes de Barros, ainda que necessite de restauração, não foi de todo perdido.

Este contraste entre os dois estados reforça o pouco interesse dos mato-grossenses com o seu cinema, já evidenciado na pesquisa publicada. Por outro lado, a partir da prospecção na UFMT dos trabalhos de conclusão de curso e monografias, em sua maioria orientados pelos professores Moacir de Santana Barros, Pedro Pinto e Lucia Helena Vendrusculo Possari, do Departamento de Comunicação, e as professoras Ludmila Brandão e Marilia Beatriz, do Instituto de Linguagens, percebe-se o surgimento, ainda que espontâneo, de diversos e importantes trabalhos sobre o cinema.

Para finalizar, gostaria de registrar que o ano de 2008 foi de grande significância para o cinema em Mato Grosso, em especial o cinema realizado no estado, no que diz respeito à sua história e à construção da  memória social na região. Primeiramente pela iniciativa do Instituto Cultural América – INCA de conclamar a sociedade e suas instituições afins para celebrarem o centenário do cinema na região. Esta iniciativa abrigou os seguintes lançamentos literários: a coletânea Memória e Mito do Cinema em Mato Grosso, o livro Salas dos Sonhos, História dos Cinema de Campo Grande, das jornalistas sul-mato-grossenses  Marinete Pinheiro e Neide Fischer; e o livro Memória da MemóriaUma História do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro – CPCB, organizado por Carlos Alberto Mattos, Carlos Augusto Brandão, José Tavares Barros e Myrna Silveira Brandão.

No campo da articulação de uma política de pesquisa integrada regionalmente foi realizado o importante  Encontro de Pesquisadores de Cinema da  Região Centro-Oeste, coordenado pelo CPCB durante o 15º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá.  No Museu de Arte e Cultura Popular da UFMT foi realizada a importante exposição de fotografias 100 Anos do Cinema em Mato Grosso, que além de Cuiabá percorreu as cidades do Rio de Janeiro, a capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, e ora segue para Goiânia e Brasília. O Arquivo Público do Estado promoveu uma série de conferências sobre o tema, e encerrando as comemorações a Academia Mato-Grossense de Letras promoveu uma semana de cultura mato-grossense, onde o cinema se fez presente. Comemorações estas que se estendem até o presente ano (2009) com a mostra 100 Anos de Cinema em Mato Grosso, promovida pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e Prefeitura de Cuiabá no morro da Caixa D’Água Velha.

Em toda a sua história centenária, o cinema no estado jamais tinha registrado um momento de tão ricas e vivazes informações. Tamanha agitação nos permitiria afirmar que o cinema em Mato Grosso virara uma  página de sua história. Das profundezas do descarte, do obscurantismo, avança em  direção a um novo patamar: o de seu reconhecimento pleno, e um novo campo gerador de conhecimento no estado. Porém, não podemos ainda afirmar nesta magnitude não fossem os descaminhos vividos para celebração do centenário, onde se constatou a absoluta omissão do governo do estado. Comemorado à revelia, o centenário, ainda assim, conseguiu superar esta mácula e – por mais que hoje seja considerada águas passadas – contribuiu para que sua história fosse divulgada e rememorada. Passo este importante para que as autoridades e intelectuais, produtores e estudantes se sensibilizem e tratem o cinema com maior respeito e dignidade, promovendo sua definitiva  inserção no seio do desenvolvimento da cultura mato-grossense e brasileira.

A UFMT, mais uma vez, apresenta sinais promissores nesta direção. Com a recente criação do Mestrado de Estudos Contemporâneos no Instituto de Linguagem da UFMT, a transformação em curso das habilitações de Rádio e TV em Audiovisual no Curso de Comunicação Social, e as atuais reformas em curso no Cineclube Coxiponés, promovidas pela nova administração superior da UFMT, prof. Dra. Maria Lucia Cavalle Neder, pode-se abrir um novo caminho para o desenvolvimento do cinema na região, com mais pesquisas e conhecimento. Enquanto isso, a inexistência de um arquivo de filmes em Mato Grosso impede que se possa retornar ao estado o que sobrou dos cerca de 80 filmes realizados na região no período de 1908 a 1970,  e ainda os 178 registros de Lázaro Papazian. Tais fatos revelam a urgência da constituição de um arquivo único para facilitar o acesso e pesquisas, e principalmente a preservação da memória dos mato-grossenses contida nos filmes.


Luiz Carlos de Oliveira Borges é cuiabano, produtor e diretor, mestre em Cinema pela  Escola de Comunicação e Artes, servidor da Universidade Federal de Mato Grosso. Há 16 anos produz o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá. É autor da coletânea Memória e Mito do Cinema em Mato Grosso.

História dos Cinemas de Campo Grande/MS

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 54 Comentários

por Marinete Pinheiro

Cine Alhambra

Durante várias décadas os campo-grandenses tiveram nas salas de cinema seus principais espaços de lazer. Diversos fatos interessantes aconteceram e marcaram não só a vida das pessoas, mas de toda a sociedade.

Há quase um século (1910) chegou a Campo Grande o primeiro cinema trazido pelo italiano Raphael Orrico, que tinha como pretensão apresentar ao pequeno Arraial de Santo Antônio de Campo Grande a inédita forma de comunicação de imagens. Orrico, ao se hospedar no Hotel Democrata, vislumbrou a possibilidade de instalar, sob as copas das árvores, o Cine Brasil. Este cine não era exatamente uma sala de exibição cinematográfica; funcionava a céu aberto e os filmes eram projetados em um grande pano branco colocado em uma das paredes do Hotel Democrata, nas localidades da travessa Lydia Bais, situada ao lado da igreja Santo Antônio, no centro da cidade. Esta pensão tomava o espaço de um quarteirão e era conhecida pelos moradores como Chácara do Carvalho. Os frequentadores do Cine Brasil se acomodavam em tábuas rústicas, colocadas sobre caixotes. Algumas vezes era necessário levar o próprio assento, com o nome gravado, para não perdê-lo. Os mais aventureiros subiam nas árvores para assistir à novidade trazida por Orrico.

A energia para a exibição do filme vinha de um pequeno motor, movido a gasolina ou querosene, com fios estendidos pelos troncos e galhos das laranjeiras e das robustas mangueiras. O pátio do hotel, cortado por um rego d’água, era todo cercado por troncos de aroeira. O espetáculo, que começava às 20 horas, era anunciado por foguetes e rojões. A plateia assistia a documentários e comédias de curta duração exposta ao sereno e era confortada com chocolate quente e conhaque servido pelo Chiquinho do Hotel Democrata.

Outro personagem que marcou o início das projeções foi Francisco de Barros, conhecido como “Chico Phonografo”. Ele trouxe, em 1903, para a quermesse de Santo Antônio, um aparelho com uma manivela que fazia girar fitas de celulóide com figuras que produziam pequenas histórias vistas por um orifício. O paulista Francisco era um caixeiro-viajante que percorria os sertões para levar o ‘progresso da ciência’ a regiões longínquas e, com isso, ganhava alguns mil réis.

O Cine Ideal, inaugurado em 1912 pela empresa Nepomuceno & Barros, na Rua 7 de Setembro, quase esquina com a Rua 14 de Julho, foi o primeiro cinema fechado de Campo Grande. A escolha deste local surgiu em função da rua ser considerada “alegre”, devido ao movimento de pessoas que frequentavam o Café Paulicéia, instalado ao lado do Cine. As sessões eram popularmente conhecidas como ‘funções’, e ocorriam às quintas-feiras, sábados e domingos, sendo que em cada dia eram realizadas cinco sessões. As exibições tinham um intervalo de dez minutos, assim as pessoas podiam comprar balas, doces caseiros, pastéis, amendoim torrado e pipoca nas barracas instaladas em frente ao cinema. Era costume que os cavalheiros fossem buscar as guloseimas e levar para as senhoras e crianças que permaneciam dentro da sala. Como o cinema era mudo, conjuntos como “União do Sul” faziam a trilha sonora para os filmes.

Logo depois do Cine Ideal, o uberabense Bertolino Ferreira de Oliveira inaugurou, em 1914, o Cine Rio Branco, localizado na Rua 13 de Maio, e que posteriormente foi vendido a Santiago Solari. Este cine funcionava num pequeno salão alugado e se prestava à diversão local.

Em 1918, Campo Grande foi elevado à categoria de cidade. A chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (atual Novoeste) fez com que a cidade despontasse como a de maior crescimento do antigo Estado de Mato Grosso. É nesse contexto que Valentin dos Santos inaugura, em 1920, o Cine Guarani. A sala localizada na Avenida Afonso Pena, entre as ruas 13 de Maio e Rui Barbosa, tinha instalações de teatro com camarotes; um luxo para a época. Durante algum tempo, a administração desse cinema passou para Luís Antônio Fernandes da Silva, que mais tarde o vendeu para os Irmãos Neder. Esses reformaram o ambiente para um estilo mais fino e trocaram o nome por Cine Central, que passou a receber lançamentos de filmes famosos e apresentação de grupos de teatro amador.

Em 1932, surge um concorrente à altura para disputar o público do Cine Central: o Cine Trianon, marco cultural na sociedade da época, pois uniu os proprietários irmãos Neder e Juvenal Alves Correa, antes o único proprietário do Trianon, surgindo então a sociedade Correia & Neder. Esta sala situava-se na Rua 14 de Julho, onde se encontra hoje a galeria São José. Na época, era costume que soldados disparassem foguetes toda vez que uma boa película era exibida.

Outro marco da cultura cinematográfica de Campo Grande foi a inauguração do Cine-teatro Santa Helena, em 1929, na Rua Dom Aquino, região considerada ponto de jogatina, prostíbulos e bebedeira. O proprietário do cinema, o egípcio chamado Alexandre Kalyl Saad, criou, além de um espaço cultural, uma nova política de vizinhança, pois incentivou a população a frequentar a rua considerada marginalizada, dando a ela um aspecto novo.

Este cinema tinha 1,3 mil lugares e mudou de proprietário em 1937, quando Saad resolveu vendê-lo para Félix Damus. O novo proprietário realizou uma grande reforma e instalou nele modernos equipamentos importados da Europa, possibilitando a exibição de filmes com som e imagem simultâneos. Deve ser Amor (1920), tendo como atriz principal Collen Moore, foi o primeiro filme estrangeiro exibido com esta tecnologia, sendo projetado em oito partes.

Logo após o surgimento do Santa Helena, Karim Bacha inaugurou, em 1937, o Cine-teatro Alhambra, na Avenida Afonso Pena. Este cinema promoveu por várias décadas um grande impulso à vida cultural campo-grandense, sendo considerado o cine mais significativo e, assim como outras salas de exibições, foi ponto de encontro para diversos relacionamentos amorosos. O casamento entre Tarcísio Dal Farra, que veio ao antigo Estado de Mato Grosso para administrar as salas da Empresa Teatral Pedutti, com Nelly Hugueney é prova disso. Eles se conheceram na porta do cinema, casaram-se e moraram por 32 anos ao lado do cine Alhambra.

Em Campo Grande, Tarcísio administrou os cines Alhambra, Rialto, Santa Helena, Plaza, Center e o Auto Cine. Logo que as seis salas de exibição foram arrendadas, Tarcísio resolveu se aposentar. Nessa época, o Alhambra estava em pleno funcionamento. A demolição para construção de um hotel, que até hoje não foi terminado, só ocorreu em 1987, anos depois de Tarcísio se aposentar. O Alhambra foi o último espaço de exibição cinematográfica da empresa Pedutti a ser fechado na capital. Demolido, passou a guardar em seus escombros parte da memória cinematográfica sul-mato-grossense.

Em várias das salas de cinema, a divulgação dos filmes era feita através de painéis pintados à mão pelos “decoradores de cinema”. Depois de lido todo o material publicitário, que na realidade eram frases do filme enviadas juntos com as películas, os artistas confeccionavam os painéis. No cartaz dava-se destaque ao nome do ator principal, como John Wayne, Gregory Peck, Charles Bronson, Anthony Steffen, já que o título do filme não era tão importante.

No Cine Santa Helena eram exibidas películas japonesas todas as sextas-feiras. O público brasileiro não gostava muito desse tipo de filme, mas a grande colônia nipônica, já existente em Campo Grande, lotava a sala de exibição. Eles chegavam de charrete, carroça ou a pé. O alerta para o início da sessão era feito através de música clássica executada em vinil. Enquanto o filme não começava, a moçada ficava paquerando dentro do cinema. As mulheres sentavam-se primeiro e os homens ficavam circulando na sala para ver se alguma garota lhe dirigia o olhar. Quando uma moça correspondia, era um sinal de que ele podia se sentar ao lado dela. Quando começava a música, todos se acomodavam.

Outro cinema relevante em Campo Grande foi o Cine Rialto, instalado na Rua Antônio Maria Coelho. Possuía 800 lugares e uma arquitetura simples que marcou época. Apesar de ser a menor sala dos três cinemas (Alhambra e Santa Helena), o Rialto fez parte da constelação de lazer que mobilizava a cidade. Alcançava grande simpatia de pessoas que se deslocavam à noite para assistir à sessão, às vezes utilizando lampião a gás, pois a energia elétrica não alcançava todas as residências. A fila que se formava em frente à bilheteria era grande, chegando ocasionalmente a faltar ingressos. Isso porque o rádio era coisa de privilegiado e a televisão não existia. A única forma de diversão era o cinema, ou o circo, quando chegava à cidade.

A rua escura e sem asfalto tinha um modesto comércio. Eram pequenos “barzinhos” e mercearias. Antes da construção do Rialto, havia no terreno algumas casas de madeira que pertenciam a um grego. Os moradores consideravam o local como um prostíbulo, mas não se tem a certeza que um dia ali foi, de fato, um bordel. Para colocar o Rialto em funcionamento foi preciso instalar um gerador próprio, que possibilitava a projeção das imagens numa tela panorâmica. Este cinema não era uma casa de espetáculos, exibia somente filmes. Não tinha palco apropriado como o Alhambra e o Santa Helena. Tinha, entretanto, um mezanino, e na programação havia sessões reservadas às moças que pagavam meia-entrada e matinês para as crianças.

A primeira fase do cine Rialto durou até metade da década de 1950, quando o público foi diminuindo gradativamente. Para não perder espaço, em 1958 uma reforma o transformou em um cinema de luxo. A reestruturação da sala trouxe também a modernidade: a tela panorâmica utilizada para projeção foi trocada, assim como as cadeiras que passaram a ter estofado. A reforma mudou até mesmo o visual dos frequentadores. A partir de então as mulheres eram, por exigência da casa, obrigadas a usarem vestidos “à altura” (roupas finas que fugissem do cotidiano), e os homens só podiam entrar de terno e gravata.

Dentro da sala, o costume de ficar circulando até começar o filme para flertar com alguém também foi banido. A partir da reforma, o público tinha que entrar e, imediatamente, ocupar o assento.

Com a reforma do cine Alhambra, o Rialto acabou perdendo o “glamour” e tornando-se comum. Sendo assim, este cinema teve três fases: a primeira foi o auge; a segunda foi a transformação, que ocorreu logo após a reforma, quando se tornou um espaço luxuoso; e a terceira, um cinema que caiu no ostracismo.

Na década de 1970, a Avenida Júlio de Castilho recebia grande fluxo de carros de bois. Nas suas imediações, onde hoje está localizado o bairro Santo Amaro, as ruas sem asfalto eram cheias de buracos e lama. Por isso é difícil imaginar uma sala de cinema nesse bairro. Difícil hoje, porque em 1972 foi construído o cine Estrela, que funcionou por seis anos. O motivo de escolha do local longe do centro para a construção da sala de exibição ninguém sabe dizer. O que se sabe é que, mesmo sendo distante, a sala atraía um bom público. Devido à falta de alternativas de lazer, muitos espectadores se deslocavam do centro da cidade para assistirem aos filmes que eram substituídos a cada três dias.

O cine Estrela foi fechado em 1978. Mesmo estando instalado num local de difícil acesso e enfrentando a concorrência dos cinemas do centro da cidade, o Estrela era bem frequentado. Por ser um cinema pequeno, tinha poucos empregados. Quem operava o projetor também atendia na bilheteria. Quando o cinema ficava cheio o proprietário corria no vizinho para pedir emprestadas as cadeiras para acomodar o público.

Já no bairro Nova Campo Grande foi construída uma “monumental” sala de cinema  na década de 1970. O prédio do Nova Campo Grande foi levantado pelo tenente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) Ubirajara Ortega, com a ajuda de sua esposa, Adelina Arce Ortega, e de um pedreiro. Externamente o cinema continua com a estrutura conservada, atestando sua existência, já internamente ele foi modificado em consequência do sucateamento e da necessidade de adaptações para a criação de chinchilas, última atividade desenvolvida no espaço que começou a funcionar como cinema em meados de 1975 e parou por volta de 1982.

Ir ao cinema, para as crianças do bairro, era diversão total. Muitas vezes, o que importava era o contato com os colegas. Todos se conheciam. Da mesma forma que ocorria nos demais espaços de projeção, o Cine Nova Campo Grande também se tornou ponto de encontro dos namorados. Geralmente eram projetados filmes populares, lançados há muito tempo atrás. Na realidade eram filmes mais baratos, visto que filmes “clássicos” e lançamentos tinham locação mais cara.

O bairro, afastado do centro da cidade, tinha um transporte coletivo muito deficiente, de forma que o programa das famílias e o ponto de encontro eram o cinema. Nos dias em que havia exibição de filmes ou outros eventos, como quermesses e reunião de moradores, o local defronte ao cinema ficava repleto de bicicletas usadas tanto pelas crianças como por adultos. Antes do “elefante branco” (apelido dado ao cinema pelos vizinhos) encontrar novo proprietário, ele foi totalmente sucateado.

O Auto Cine de Campo Grande, inaugurado em 1972, foi logo no início da atividade administrado pela empresa Pedutti, que fazia a seleção dos filmes, contratava os funcionários e pagava mensalmente à UFMS uma porcentagem do lucro. Em 1983, esta parceria terminou e a administração da universidade ficou responsável pelo Auto Cine. Conhecido inicialmente entre os estudantes da própria universidade, estes trataram de espalhar a novidade de que dentro do campus havia um local de lazer onde passavam filmes de aventura, bang-bang, comédias e até mesmo pornochanchadas.

Os filmes eram exibidos todos os dias, a partir de uma sala de projeção localizada bem no meio da pista. À frente dela e aos lados havia espaço para 128 carros. Na parte de trás dos carros, uma pequena arquibancada acomodava as pessoas que chegavam a pé. Para o público ouvir os diálogos dos filmes, logo na portaria o motorista recebia um alto-falante e conectava-o nos ‘chapéus’, uma espécie de poste com fiação para saída de som. Havia um ‘chapéu’ e um amplificador para cada carro, cujos acessórios eram instalados na porta do veículo. Casais de namorados eram os que mais contemplavam a novidade de assistir a um filme dentro do automóvel.

Como a empresa Pedutti era o maior cliente das distribuidoras de filmes, pois solicitava produções a serem exibidas em todo o país, os pedidos que o Auto Cine fazia ficavam em “segundo plano”, alguns chegando anos depois do lançamento. Mesmo assim, o público no Auto Cine era grande. Havia dias em que as filas de carros para entrar se estendia a dezenas de metros. Hoje, quem percorre o local, em ruínas, não imagina que um dia foi um espaço tão disputado pelo público motorizado em busca de diversão. No final da década de 1970, auge do Auto Cine, a programação do lugar tomava espaço nas ruas e avenidas da cidade. Os cartazes utilizados eram grandes e ficavam amarrados nos postes.

Na mesma época do Auto Cine, começaram a funcionar os cinemas Plaza e Center, ambos instalados dentro do terminal rodoviário de Campo Grande em 1976. Logo no lançamento do filme Os Trapalhões no Planeta dos Macacos, homens, mulheres e crianças formaram enormes filas. No estacionamento, localizado no subsolo, era difícil encontrar uma vaga.

O Cine Plaza, que funcionou de 1977 a 1993, apresentava várias particularidades, o que lhe permitiu a cobrança do ingresso com preço mais elevado do que o estabelecido pelo Cine Center, uma sala mais simples, com cadeiras e piso de madeira. No Plaza havia sala de espera, ar condicionado e um american bar que possibilitava às pessoas assistirem ao filme e, ao mesmo tempo, conversarem sem atrapalhar a plateia acomodada nas cadeiras normais.

Com a chegada da televisão e do videocassete, o número de pessoas que frequentavam as salas de cinema começou a diminuir. O público passou a trocar a diversão do cinema pelas novidades oferecidas pela televisão. Com a redução do público, o empresário que mantinha os cines Center e Plaza começou a acumular dívidas com fornecedores e distribuidoras de filmes. Em razão disso, não conseguia fazer a troca de filmes e nem adquirir constantemente bons lançamentos, o que o obrigava a manter em cartaz a mesma produção por vários dias.

No final da década de 1980, os referidos cinemas já estavam com a estrutura falida, sobrevivendo de lançamentos. Foi a partir de 1992 que o Center começou a exibir somente filmes pornográficos. No ano seguinte (1993), o Plaza parou de funcionar.

 Em toda a história cinematográfica de Campo Grande, poucas pessoas atuaram nas quatro etapas da indústria do cinema, que são: produção, importação, distribuição e exibição de filmes. Entre as exceções está a Família Lahdo, proprietária de uma produtora de documentários, jornais cinematográficos, salas de exibição e realizadora do primeiro longa-metragem inteiramente produzido em Campo Grande, Paralelos Trágicos (1965), baseado no livro homônimo escrito por Bernardo Lahdo.

Paralelos Trágicos é de fundamental importância para a cinematografia sul-mato-grossense porque teve elenco e equipe técnica doméstica, e apresenta imagens de Campo Grande na década de 1960. Recebeu selo de qualidade da Censura Federal e liberação para ser exportado devido ao ótimo som e imagem. Nas décadas de 1960 e 1970, produções que não recebessem esta garantia não poderiam participar de festivais, nem serem exportadas. Além disso, as salas não eram obrigadas a exibir a obra, limitando as exibições aos “círculos de amigos”.

Em 1969, a Lahdo Produções Cinematográficas importou diversos filmes de longa metragem e os distribuiu no mercado. Os primeiros foram de bang-bang, gênero que fazia grande sucesso. Foi nesse momento que surgiu a ideia de montarem a empresa exibidora de cinema. As primeiras projeções aconteceram dentro de casa, com pequeno projetor e plateias formadas por amigos e familiares. Anos mais tarde, a família Lahdo tornou-se uma grande exibidora, com salas distribuídas nos estados do Paraná e São Paulo, além do Mato Grosso, chegando a um total de quinze.

Em Campo Grande, os Lahdo construíram os cines Acapulco e Jalisco. Naquele período não foi possível a eles o domínio do mercado, haja vista que já se encontrava instalada na cidade a Empresa Teatral Pedutti, a qual possuía mais de uma centena de salas espalhadas pelo país. O mini-cinema cultural Jalisco, inaugurado em 1969, um ano antes do Acapulco, tinha 153 lugares e realizou o primeiro Festival de Cinema do Estado. Com capacidade para quase 700 pessoas e um palco de apresentações, o Acapulco, que funcionou na Rua 26 de Agosto, foi sede de exibição de grandes produções, entre elas o filme Love Story (1970), em cartaz por três meses com sessões lotadas. Outro filme com bom público foi O Exorcista (1973), batendo recordes e ficando em cartaz por seis meses, com quatro sessões diárias.

Em 2000, o cine Acapulco foi incendiado. As causas desse fatídico incidente ainda são desconhecidas. Naquele ano, o Acapulco já estava com suas portas fechadas havia mais de uma década. Foi exatamente no dia 28 de fevereiro de 1983 que a família Lahdo fechou, simultaneamente, todas as salas de cinema de sua propriedade. Um dos motivos foi o alto custo para mantê-las.

Na década de 1960, mais especificamente no ano de 1967/68, período de ditadura militar, Mato Grosso do Sul viu nascer o movimento cineclubista que tomou para si um sentido de contestação, aderindo às políticas públicas de democratização do acesso à cultura e, em especial, à cultura do audiovisual.

 Maria da Glória de Sá Rosa, também conhecida como Professora Glorinha, acompanhou o crescimento desse movimento nos outros estados brasileiros e foi quem organizou e fundou o Cineclube de Campo Grande. Sem nunca ter estrutura física própria, ele funcionava pela “paixão dos cineclubistas”. Por isso, o lema desses cinéfilos era “uma ideia na cabeça e um projetor 16 mm nas costas”. As projeções podiam ser feitas até mesmo em telas de lençol, isso o tornava itinerante. As reuniões aconteciam na casa dos cineclubistas, nos salões dos colégios localizados no centro e também nas dependências da Faculdade Dom Aquino de Ciências e Letras. Além das exibições, o Cineclube abrigava cursos de cinema. Dessa maneira os participantes tinham a oportunidade de estudar as técnicas e o funcionamento das produções, começando neste momento a surgirem os primeiros cineastas do estado.

Durante o período de ditadura militar, os cineclubes representavam focos de resistência. Eram espaços onde se discutiam filmes proibidos, que não eram mostrados em outros locais, além de produções vindas da Itália, da França e de países da América Latina.

Graças ao movimento cineclubista, muitas pessoas deixavam de fazer atividades ligadas ao comércio para se dedicar a atividades de mobilização, mudança de consciências e formação de opinião. Em Campo Grande, todo o dinheiro arrecadado com as exibições dos filmes era utilizado para pagar o aluguel e o transporte dos filmes. As sessões eram divulgadas através de panfletos xerocopiados, obtidos gratuitamente com os “patrocinadores”. O dono da primeira casa de fotocopiadora de Campo Grande liberava para o Cineclube uma cota, por mês, de cópias que eram distribuídas nas universidades e nos barzinhos frequentados por intelectuais. As rádios e TVs também divulgavam as sessões. O lambe-lambe (colação de cartazes nos postes da cidade) também era feito pelos cineclubistas.

No auge do movimento foram montados dois espaços na periferia de Campo Grande para as atividades do Cineclube: no bairro Nova Lima, loteamento de chão batido e de terra vermelha, com poucas famílias, e no bairro São Benedito. Para esta população extremamente carente o cinema era algo fantástico, e o Cineclube foi o primeiro contato com a arte. Conhecer o cinema era algo mágico, pois não havia televisão nem telefone, apenas o teatro escolar, sempre improvisado.

 Em 1981, quando o Cineclube de Campo Grande funcionou no Sindicato da Construção Civil, o projetor era colocado em cima de um armário de arquivo e as sessões aconteciam sempre à noite. Um horário difícil para as crianças, mas mesmo assim a molecada enchia as sessões e os cineclubistas eram obrigados a deixá-las assistir aos filmes, por vários motivos: um deles era o fato de formarem o público mais fiel do Cineclube. Mas, além do horário, outro problema era a carência de filmes infantis.

 Nessa época surgiu a ideia de montar o Núcleo de Cinema de Animação de Campo Grande. O Núcleo recebeu abrigo no Centro Cultural e coincidentemente foi inaugurado junto com o espaço, presidido por José Octavio Guizzo, um cinéfilo que fomentou a atividade cinematográfica no estado.

Para fazer animação, o núcleo optou pelo “Single 8”, uma película diferente da 16mm utilizada no Núcleo de Campinas. Com o “Single 8” era possível realizar todo o processo de produção em Campo Grande. Já os filmes em 16mm exigiam uma moviola especifica para edição, e este equipamento na época só existia fora do estado.

Já na década de 1980, Campo Grande entra numa nova fase. O cinema deixa de ser o único espaço de lazer, a televisão invade as casas de forma avassaladora, os bares e boates se transformam nos espaços mais frequentados. Mesmo assim as salas de cinema resistem, em menor quantidade, mas sempre proporcionando experiências da imaginação, como é o caso do CineCultura, considerado ponto de encontro dos amantes da sétima arte.

Hoje localizado na avenida Afonso Pena, o CineCultura teve seu primeiro endereço no antigo museu Dom Bosco, localizado na rua Barão do Rio Branco. O espaço é histórico, não só porque abrigou o CineCultura, mas também porque foi sede da 1ª Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. E por abrigar uma casa de Leis, quando o cinema foi criado as cadeiras já estavam postas, o que em parte facilitou sua instalação. Foram necessárias apenas adaptações como o abafamento acústico, a construção da tela e da cabine de projeção, instalação de equipamento e adequação da antiga recepção num Café.

O CineCultura nasceu da necessidade de um espaço em Campo Grande para exibição de filmes de arte.  A primeira sessão, que aconteceu em maio de 2002, com o filme O Invasor (2001), teve um fato inusitado: o projetor, antigo e há muito tempo sem uso, pifou no meio da sessão. O equipamento havia sido adquirido de um pastor que, por sua vez, havia comprado um prédio onde funcionou um cinema. Como o projetor não era utilizado no templo religioso, ficou parado por muito tempo, sem manutenção. Apesar de ter passado por uma cuidadosa revisão, acabou parando no meio da projeção.  Felizmente, o projecionista conseguiu resolver o problema e exibir o filme até o final.

 Desde a inauguração, o CineCultura mantém o compromisso com a pluralidade estética da cinematografia nacional e internacional. O espaço exibe os mais diversos filmes e estes geralmente não participam da lista dos blockbusters.

Outro espaço dedicado à sétima arte que resiste é o Cine Campo Grande, instalado na Rua 15 de novembro, entre as ruas Rui Barbosa e Pedro Celestino, pertencente à Cinematográfica Araújo. As duas salas inauguradas na década de 1980 resistem no centro com um bom número de frequentadores, apesar da concorrência do complexo Cinemark existente no principal shopping da cidade.

 Considerada uma sala popular, o Cine Campo Grande é bem frequentado por três motivos. Primeiro: acesso facilitado, pois está localizado na área central da cidade. Segundo: exibe filmes que estão na lista dos blockbusters. Por último, pelo baixo preço dos ingressos. O Cinemark, espaço de exibição cinematográfica mais frequentado em Campo Grande, foi inaugurado em novembro de 1999. É um multiplex que oferece várias opções da cinematografia mundial em salas confortáveis.

Pesquisando a história dos espaços de exibição em Campo Grande é possível perceber que hoje, quase 100 anos após a primeira exibição, a realidade é outra e, apesar das salas de cinema não serem mais os principais pontos de encontro, a despeito de toda tecnologia e toda facilidade de acesso, o fato de irmos ao cinema é o que torna a atividade cinematográfica viável e o escurinho do cinema ainda é um território mágico de imaginação.


Marinete Pinheiro é jornalista, correspondente no Brasil do jornal argentino-boliviano Renacer, produtora cultural e audiovisual. Publicou o livro Salas de Sonhos – História dos Cinemas de Campo Grande, Editora UFMS – 2008.

Cinema Gaúcho I – 1900 – 1913

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 3 Comentários

por Antônio Jesus Pfeil

Francisco Xavier e Francisco Santos, sócios da Guarany Filmes

Relembrar o início do cinema no Rio Grande do Sul, neste momento em que já tenho prontos os originais de dois livros à espera de serem publicados, Cinema Gaúcho dos Anos 10 e Cinema Gaúcho dos Anos 20, não deixa de ser prazeroso. O desabrochar do século 20 teve realmente seu início após a Primeira Guerra Mundial, precisamente nos anos 20, no entanto podemos assegurar que na primeira década do século alinhavou-se a ideia de evolução e que um mundo novo teria princípio. Coisas vinda da Europa. “O Rio de Janeiro passava por uma grande transformação urbana. As demolições de velhos pardieiros na parte central da Capital tiveram início em 1903, não sem os protestos violentos dos políticos oposicionistas e dos comerciantes conservadores que culminaram nas arruaças populares e na quebra de lampiões em novembro de 1904”, ano em que é inaugurada parte da Avenida Central.

“O Rio civiliza-se! – era o slogan que se ouvia…Uma ânsia de progresso dominava a cidade: prédios novos, iluminação elétrica, diversões noturnas, higiene nas  ruas, e nas amplas avenidas começam a surgir os primeiros automóveis.” Porto Alegre não ficaria indiferente às influências da Capital e era um mercado aberto. Uma cidade ainda colonial, com casas de telhados formados pelas telhas chamadas de “portuguesas” finalizando ainda em beirais, qual as platibandas já tentavam abafar. Telhados de claraboias, janelas de guilhotina e porta em arco. Vielas irregulares, mal cheirosas, imundas, por onde passava o “pipeiro” da fonte do Freitas ou do bairro do Menino Deus distribuindo de porta em porta a “água potável” à população. Em alguns bairros, como na Floresta, ainda se viam lampiões a gás e mesmo no Centro da cidade alguns diziam presentes. Algumas linhas de bonde ainda eram servidas por carros de tração animal, embora os bondes elétricos tivessem surgido em 1908.”

Debruçar-se sobre a história do cinema gaúcho, de maneira ampla, é tentar reunir elementos controvertidos, por se tratar de um assunto em que residem o sonho, a criatividade, a esperança e a frustação, que paralelos às questões econômicas se revestem de incertezas. Ingredientes que acabam por interferir na realidade. Assim foi e ainda é o cinema. Imaginem tentar escrever e recuperar esse passado, mas é o que estamos tentando fazer, nas páginas que seguem. Por outro lado nada mais gratificante, em poder deixar reunidos os registros dessa primeira década do século 20, em que sob todos os aspectos o cinema se organizava, no Estado em particular, impondo um novo sentimento, um novo olhar e instrumento de análise da própria condição humana. Durante anos fomos em busca desse roteiro mágico, procurando enquadrar esses personagens, por vezes aventureiros, loucos e idealistas. Corta. Não fossem os velhos jornais e os arquivos, teríamos um vazio histórico, e nas surradas páginas das revistas e das colunas dos diários encontramos o testemunho, ao menos em parte, dos fatos que montaram esse argumento, vivido e projetado nas telas dos primeiros cinemas.

As opções sociais na capital gaúcha, além dos saraus e piqueniques, se mantinham nas poucas casas teatrais: Polytheama Portoalegrense, Sociedade Bailante e o Teatro São Pedro, este mantendo a preferência do público elitista. O cinema já havia deixado suas impressões pela rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre, e foram de significativa importância histórica, visto que os promotores da façanha, Francisco de Paola e George Renouleau, eram oriundos do Rio de Janeiro e São Paulo, onde realizaram as primeiras exibições de “vistas animadas” no Brasil. De Paola esteve em Porto Alegre em dezembro de 1892, secretariando Frederico Figner, que andava demonstrando o seu “Phonographo” de Edison. Quem, no entanto, realizou a primeira exibição cinematográfica no Rio Grande do Sul foi De Paola, em 4 de novembro de 1896. George Renauleau, seguindo os passos de seu concorrente, fez a sua primeira apresentação no dia 7 de novembro, na rua dos Andradas, nº 230, sendo o seu aparelho confundido com o “do Genial Edison”, quando na realidade era um projetor dos Irmãos Lumière, fato posteriormente esclarecido. Por aqui ficou até o dia 27 de novembro. Francisco De Paola se manteve até 5 de dezembro, viajando para Buenos Aires.

A partir daí, apenas três cinematógrafos se apresentaram como atrações em circo e companhia de variedades. A imprensa por sua vez registrava: o Circo Serino, pertencente à Empreza Cassali & Bovaria, o Kinetophone de Edison, um projetor acoplado ao fonógrafo, mantinha o sucesso dos espetáculos, na noite de 4 de abril de 1897, e semanas seguintes. No mesmo ano, após a enchente de junho, o “conhecido ilusionista e prestidigitador Faure Nicolay”, no Teatro São Pedro – 24.07-, juntamente com a Cia. De Zarzuelas, apresenta o seu cinematógrafo, “considerado inferior aos que já vimos nesta Capital”, ao lado de um “Diaphorana Universal (…) medíocre, sem grandes efeitos”. Vindo de Florianópolis, passando por Rio Grande, Bagé e Santa Maria, a Companhia de Variedades do Teatro Lucinda, dirigida por Germano Alves, estreia no Teatro São Pedro, dia 9 de abril de 1898, arrancando aplausos do público com o seu cinematógrafo de Lumière. No dia 26.04 foram para São Leopoldo.

Na virada do século a modernização vai se impondo, mudando os conceitos, e a presença do cinema causa preocupações quanto a sua influência perniciosa nas questões morais. As entidades religiosas contestam e a imprensa assiduamente mantém a vigilância na publicação de artigos. O impacto do registro cinematográfico se impõe de maneira tão acentuada que de imediato fez transparecer a sua marca no jornal do Comércio de 13.4.1900, onde surgiu a coluna “O Cinematographo”, assinada com o pseudônimo de Edison, abordando pequenos dramas, antevendo os enredos com que o cinema iria rotineiramente inundar a década de 20 e até os anos 50.

O cinematógrafo começa a tomar corpo e circular por todo o país. Homens como Victorio Di Maio, os irmãos Filippi e Guido Penelli percorriam o Brasil inteiro projetando suas “vistas” e até mesmo filmando. Em Porto Alegre, um aparelho com o nome de “Panorama Internacional”, que todos os dias exibia imagens estáticas, procurava substituir pretensamente o cinematógrafo. Era bem frequentado, ficou uns 30 dias, encerrando no dia 25 de julho, partindo no dia seguinte, no navio Itaipava, para Pelotas. O proprietário do aparelho era José Barrucci. Alguns teatros estavam fechando, em virtude de uma certa precariedade com relação à frequência. O cinema retornou em 1901, no dia 15 de janeiro, na rua dos Andradas nº 397, onde foi a tinturaria Phoenix, das 7 horas da tarde às 10 da noite, com o nome de “Biographo Americano”, de propriedade dos irmãos Domingos e José Filippi, que pela primeira vez pisavam no Rio Grande do Sul. Um outro cinematógrafo aparece e para surpresa foi José Barrucci o ex-proprietário do Panorama Universal, que projetava imagens sem movimentos, mas que trouxe como novidade um cinematógrafo Lumière, de Paris, instalando-se numa sala de bilhares do Café Guarany, onde permaneceu de 24 de janeiro a 27 de fevereiro, transferindo-se para Bagé, onde obteve grande sucesso, a partir de 17 de março.

A Exposição de 1901 no Parque da Redenção era uma antiga aspiração do governo do estado, com intenções de mostrar o desenvolvimento industrial e econômico, com grande alarido e festividades, e foi inaugurada em 24 de fevereiro. No Teatro São Pedro, um dia antes, foi inaugurado um cinematógrafo, de Henrique Sastre, engenheiro arquiteto que já havia estado em Porto Alegre, entre 1889 e 1900, construindo alguns prédios. Foi uma sessão especial para a imprensa, às 8h30 da noite, permanecendo até o dia 8 de março, com extraordinário sucesso, seguindo para o cenário da Exposição, onde se apresentou no dia seguinte. Entre as “vistas” exibidas, algumas sobre o Estado de Santa Catarina.

A interferência do cinema nas programações do teatro em questão era apenas tolerada, em virtude da frequência diversificada do público. O cinema era um divertimento popular e estava assumindo o seu lugar nas classes menos privilegiadas. Por outro lado a burguesia também se locupletava com as imagens, daí as exibições comumentes particulares dedicadas à imprensa e ao “Presidente do Estado”, com seus convidados. Com boa acolhida, mais cinematógrafos chegavam: no dia 8 de abril, vindo de Montevidéu, o Cinematógrafo Gaumont, que estreou dia 19 de abril, no Teatro São Pedro, com vários filmes, além de uma “Exposição de Cinematographo” na feira. A partir de 7 de julho, outro cinematógrafo se apresentou no Teatro São Pedro com “vistas” variadas, dia 9 com novas “vistas”, 13 e 14 últimas exibições. No dia 15 de setembro, no Polytheama PortoAlegrense a exibição do Cinematógrafo Cometa, com variado programa. No mesmo local, dia 29 de setembro, estreou o Cinematógrafo Universal, de propriedade de José Barrucci e do Sr. H. Kaurt, onde ficou até 6 de outubro. Ainda no mesmo local, no dia 1º de outubro, no Cinematographo Universal, que José Barrucci posteriormente vendeu a H. Kaurt, foi lançado o documentário Passagem da Bíblia pela Ponte do Gravathay. No dia 6 de novembro, no Teatro do Parque, inaugurado em outubro, estreou o Cinematógrafo do Sr. Henrique Sastre, ainda em franca atividade, com imagens fixas e animadas, programação considerada “excellente e bem escolhida”. Sartre ficou exibindo o seu “magnífico cinematographo” até 15 de novembro.

Os anos seguintes, 1902 a 1906, foram paupérrimos. Assinala-se a persistente presença de José Barrucci com seu  Moderno Cinematographo, em 1º de abril de 1902, no Teatro São Pedro, e ainda nos dias 4, 5, 6, 7 e 12 (às 18h e 21h), com casa sempre lotada. Segue nos dias 18, 19, 21, 22, 25, 26 de abril e 3 de Maio. Em 1º de abril de 1903, novamente José Barrucci, que ficou até o mês seguimte no Teatro São Pedro.

O Rio de Janeiro por esta época enfrentava surtos de peste bubônica, febre amarela, varíola e consequentes problemas que passaram a interferir diretamente no meio artístico, se ressentindo no Rio Grande do Sul de companhias teatrais de São Paulo e Rio. Nos dias 29 e 30 de novembro de 1903, juntou-se a um cinematógrafo a Companhia Dramática Particular Porto Alegrense, apresentando o “drama, em três actos” original do correligionário Zeferino Brasil, Peccados de Velho, entre outras apresentações de violão e canto lírico. O ano estava chegando ao fim e em 24.12, no Teatro São Pedro, adeu-se a estreia do Cinematógrafo de Antonio Mecking, que ficou nos dias 25, 26 e 27. No último dia a presença de público foi fraca.

Apesar de tudo, o ano de 1904 foi marcante com a chegada dos Irmãos Felippi (José e Domingos), a quem devemos as primeiras filmagens realizadas nas cidades de Rio Grande, Pelotas, Bagé, Jaguarão e Porto Alegre: A Chegada do Senador Pinheiro Machado, em Rio Grande, 23.2, Vistas da União Gaúcha, no Centro de Tradições, em Pelotas. Em Porto Alegre o Cinematógrafo se apresentou no Teatro São Pedro no dia 31.07, exibindo as Vistas do Grêmio Tamandaré pela Bacia do Guaíba, além dos filmes das outras cidades, ficando até 12.10. Durante os dias de exibição, os Irmãos Felippi ainda fizeram várias filmagens. Também foram exibidas vistas de outros Estados: Mato Grosso, Amazonas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina. A última exibição foi no Polytheama Portoalegrense.

Em 1905, a grande novidade foi o cinema “sonoro” de E. Hervert, na combinação do Cinematographo com o Phonographo, no Teatro São Pedro, em 31.08, sendo aplaudido pelo público até o dia 10.09, transferindo-se dia 12 para o Polytheama e despedindo-se no dia 27, destacando no final de um anúncio publicado a frase: “Adeus Porto Alegre”. Em 1906, apenas dois aparelhos: o de Jorge Virgt, que teve a sua estreia no dia 15 de fevereiro e ficou apenas três dias. Um outro, de Alfredo Moura, que se apresentou no dia 3 de abril e permaneceu até o dia 16, não trouxe maiores novidades. Na cidade de Bagé a “empreza Candeburg” exibia filmes no Teatro 28 de Setembro. Posteriormente chegou na cidade o Cinematógrafo Falante Star Cy, que exibia um cantor em combinação com o disco, cuja sintonia imperfeita constituía mais uma tentativa do cinema sonoro. Além disso voltou novamente com outras exibições imitando vários ruídos e tentando sincronizar com as imagens do filme. A trilha sonora, com um pequeno grupo musical ou um pianista, que ficavam atrás da tela, procuravam alegrar o público.

A influência acentuada do cinematógrafo, em 1907, tem suas raízes no Rio de Janeiro, com a inauguração do novo sistema de eletrificação. Parte desta incidência de aparelhos cinematográficos pelo País, só em Porto Alegre oito obtiveram registros na imprensa:  “Os Cinematographos estão em pleno esplendor. Em toda parte dominam soberanamente monopolizando as atenções, aqui, como no Rio, em Paris ou Nova York” (Diário da Tarde, 11.11.07). Desde o início de abril, no Polytheama, no frequentado Teatro do Caminho Novo, a empresa Herique Dürins & Cia passou a exibir imagens cinematográficas, que agradavam aos frequentadores. Seguiu nos dias 7, 13, 14, 20, 21, 27 e 28.

Um mês depois, em 28 de maio, no Polytheama, a exibição do Cinematógrafo da empresa Baterlô & Cia. Houve um acidente no projetor e a sessão foi cancelada. A estreia aconteceu no dia 31, seguindo nos dias 2, 4, 6, 7, 8 e 9 de junho. Os filmes exibidos foram: O Bocejo, A Voz da Consciência , Um Homem Mal Educado, Fructo Proibido e Drama de um Trem. Seguiu depois para Santa Maria, dia 11. Quem tinha chegado em Porto Alegre no dia 2 foi Domingos Filippi, proprietário do Bioscopio Lyrico, que fez a sua estreia no Polytheama, no dia 10.06. O gramofone utilizado para sincronizar o som com as imagens foi dos melhores, provocando aplausos da plateia. No Teatro São Pedro, dia 19, a Companhia Dramática de Eduardo Victorino utilizou um Poliorama do século XIX para atrair o público, projetando uma coleção de quadros interessantes, coloridos. Em 7 de julho, no Polytheama, o Bioscópio dos Irmãos Filippi promovia duas variadas exibições, sendo uma para crianças de 10 anos, que não pagavam ingresso se fossem acompanhadas à matinê. A programação continuou nos dias 8 a 14 e 18 a 20. Quem assumiu o cargo de secretário da empresa dos Irmãos Filippi foi Lydio Alves Pereira, e em 6 de agosto o Bioscópio se apresentava no Teatro São Pedro, onde ficou até o dia 18, seguindo para Pelotas no dia seguinte, cedendo espaço para “Betran & Cia”., que passou a exibir o seu The Anglo-American Biographo.

Em setembro, dia 8, a empresa Guido & Cia já anunciava que brevemente exibiria o seu “Bioscopo” no salão da Bailante, visto que o Polytheama estava interditado e o São Pedro ocupado até novembro. Devido à alfândega da cidade de Rio Grande não ter dado andamento ao processo de despacho do aparelho Bioscópio, estreou no dia 2 de outubro, ficando até o dia 19, indo para Rio Grande dia 21. Conseguindo algumas vagas, nos dias 26 e 27 de outubro, se apresentou no Teatro São Pedro o Cinematógrafo Grand Prix, da empresa  Baterlô & Cia, que já tinha conseguido exibições para os dias 8, 9 e 10 de novembro.

Num circo de touros que ficava na Rua da República, no dia 24 estreou o Cinematographo Parisiense, considerado o mais moderno. No dia 28, no Teatro São Pedro, foi a vez do Bioscopo Sul Americano, pertecente à empresa Boran & Cia, com filmes considerados inéditos. Para encerrar o ano, chegou do Rio de Janeiro no dia 14 de dezembro um novo cinematógrafo pertecente à empresa Collini & Cia, que se apresentou com o nome de Liliograph Rouget no dia 17 no Teatro São Pedro, idem nos dias 21, 22, 27 e 28.

A frequência aos “cinematographos” é rotineira, saindo do processo da curiosidade para iniciar uma trajetória de implantação e se integrar definitivamente no gosto e nos divertimentos populares.

A 11 de janeiro de 1908, em Bagé, a empresa Germá & Cia, de quem era sócio José Sastre, proprietário da Casa de Postaes Petit Paris, anunciava a estréia  do Cinematographo Brasileiro, com uma sessão dedicada à imprensa, que agradou aos convidados. No dia seguinte, durante a sessão houve jogo de confete e serpentina. Em Porto Alegre, também no dia 11, no Recreio Independência, na Rua Independência, o Cinematographo Pathé fez a sua primeira exibição. Vistas novas. Também no dia 12. No Teatro São Pedro, nos dias 12 a 17 se apresentou o Cinematógrafo da empresa Chatain & Cia., que a seguir se exibiu no Recreio Independência nos dias 18, 23, 25 e 26, que tão apreciado foi quando esteve no salão da Bailante. Na noite de 31 de janeiro, no Teatro São Pedro, o Cinematógrafo da empresa Diaz & Diaz fez uma exibição para a imprensa local, ficando até 9 de fevereiro, com o Biographo Non Plus Ultra.

Desde o início de fevereiro já se encontravam em Porto Alegre João Maciel & Coca, proprietários de um aparelho Gaumont que funcionou em diversas cidades do sul do estado. O Correio do Povo de 6/2 publicou que “por motivo da morte do rei D.Carlos e do Príncipe D.Luiz não haverá, esta semana, exibição do biographo pertencente à empresa Diaz & Diaz”. No dia 15 de fevereiro, no Teatro São Pedro, a primeira exibição do Cinematographo Moderno que Salustiano Maciel (Maciel & Coca) mandou adquirir na Europa, considerado o mais aperfeiçoado no Brasil. Um dia antes houve uma sessão para a imprensa. Os filmes exibidos foram: O Martir da Inquisição, Filho do Guarda-bosque, Amor e Loucura, Cão Ladrão, Bom Filho, Ladrão e Paralytico e Mudança de Bebados. Continuou nos dias: 20 a 23 e 27.

Por ocasião do carnaval de 1908, o fotógrafo Jacinto Ferrari documentou as manifestações populares filmando os desfiles da Sociedade Carnavalesca Esmeralda, com exibição no dia 8 de março no Teatro São Pedro. Antes, no dia 5, o Cinematógrafo Moderno exibiu: O Milagre da Virgem Maria, Evasão Cômica, Fuga Amorosa, Novo Manuscrito e Cães de Polícia. O carnaval rendeu e ainda teve exibições nos dias 18 e 21.

Um novo aparelho iria modificar os rumos do cinema em Porto Alegre e desencadear um interesse maior no campo do investimento, proporcionando o início e a estabilidade da exibição cinematográfica na Capital, como veremos. José Tours, representante de uma fábrica espanhola de material cinematográfico, montou na Rua dos Andradas, 321, o primeiro cinema de Porto Alegre: o Recreio Ideal, que inaugurou no dia 20.5.1908, com uma sessão dedicada à imprensa. O projetor era divulgado como “Auto-Tours”. No Salão da Bailante, o Cinematographo Paraíso do Rio se apresentou no dia 2/5, ficando até dia 13 de junho, quando foi para Santa Cruz. O proprietário era Patrício Marques Pires.

Algumas mudanças estavam para acontecer com os cinemas. O proprietário do Recreio Ideal, José Tours, vendeu o cinema para a Hirtz & Cia e foi para o Rio de Janeiro. A partir daí o Recreio Ideal adquire importância como ponto de encontro da sociedade e surge a figura deflagradora de Eduardo Hirtz. Em meio a alguns poucos cinematógrafos que persistiam, novos cinemas iam sendo inaugurados: Recreio Familiar, 16.06, Rua dos Andradas, 327, que depois se transferiu para a Voluntários da Pátria, 98; Cinematógrapho Rio Branco, 06.10, Rua dos Andradas, 477; Recreio Moderno, 17.10, Rua Demétrio Ribeiro, 276, antigo Café Aliança; Cinema Berlim, 07.11, Rua dos Andradas, 305; Cinema Variedades, 25.11, Rua dos Andradas, 343.

Neste mosaico cinematográfico de casas exibidoras, a atmosfera seduzida pelas imagens da tela propiciava as condições necessárias para um outro ramo de cinema: a produção de filmes. O Teatro São Pedro ainda recebia “Cinematographos”, e no dia 9 de agosto o da empresa Coldberg & Cia., em que se destacou o filme Degolação de São João Batista. Quem abrilhantou a trilha sonora foi a banda de música Carlos Gomes. O pioneiro também nas sessões de “matinées” foi Eduardo Hirtz, que aos sábados e domingos dava sessões das 2 às 5 da tarde, e à noite das 6 às 11h. No Recreio Familiar, dia 14, sessão com novos filmes com orquestra. No dia 16 de agosto, no Teatro São Pedro, o Cinematographo Pathé fez duas exibições, matinê às 5h e à noite; No Recreio Familiar, “vistas” coloridas e no Recreio Ideal, com matinê às 5h. No dia 12 de setembro, no Teatro São Pedro, o Cinematographo Grand-Prix de Bartelô & Cia, seguindo nos dias 13, 19 e 20.

Em 25.09 Eduardo Hirtz confirma que resolveu adquirir uma câmera de filmar e já tinha contratado um fotógrafo muito conhecido. No Teatro São Pedro, o Cinematógrapho Jerman & C. teve a sua primeira exibição no dia 6 e posteriormente nos dias 10, 14, 29 e 31 de outubro, exibindo no último dia o filme Pássaro Azul, com 350 metros. No dia 26, outros cinematógrafos: no Club Apollo, à Rua dos Andradas, e no Teatro São Pedro o Cinematographo Brazileiro, que se apresentou novamente no dia 7 de novembro.

No último sábado de novembro, 25, a inauguração do Cinema Variedades. O cinema pertencia à firma Lumiere & Cia e tinha como eletricista o Sr. Accacio de Andrade. A novidade era que o operador italiano Nicola Petrelli estava em Pelotas filmando a primeira partida do Esporte Club Pelotas contra o E.C. Rio Grande, produzido por Eduardo Hirtz, que começava a ampliar seus negócios. Era agente para todo o Estado do Rio Grande do Sul da Casa Pathé Fréres de Paris, que vendia aparelhos, filmes e tudo o que era referente ao cinema.

Em vista da data de lançamento, 27 de março de 1909, à parte algumas experiências que possa ter realizado, Hirtz certamente começou a produzir o primeiro filme de enredo do estado em princípios do ano. Podemos considerá-lo o segundo filme com atores produzido no Brasil, quem sabe na América do Sul, pois o primeiro foi Os Estranguladores, por Francisco Marzulo, em 1906, no Rio de Janeiro. Inevitavelmente, Ranchinho do Sertão tinha como temática a paisagem campesina. Também nisso foi pioneiro o gaúcho e como pano de fundo a revolução farroupilha. O argumento foi extraído de poema de Lobo da Costa, Ranchinho de Palha ou Aquele Ranchinho. O elenco era formado por Carlos Cavaco, Alcides Luppi, Ernesto Weyrauch, o ator Machado e Leonor.

1908 estava chegando ao fim e em 26 de dezembro, na cidade de São Leopoldo, na Sociedade Estrela do Sul, estreava o Cinematógrafo Elison, considerado “um verdadeiro desastre devido à escuridão da projeção”. Em 30/12 os cinematógrafos exibiam: Variedades – Extração do Veneno da Cobra, Piemont na Chuva, Pai Desnaturado, Só Duas Fadas e A Calma Esgota-se; Recreio Ideal –  Ladrões no Século XX, Chegada do Marechal Hermes da Fonseca, Um Pescador que foi Pescado, A Cicatriz  e Sogro Intransigente. Rio Branco –  Rio de Tolomei, Caça ao Diabo, Interior do Pavilhão Nacional do Rio de Janeiro, Confissão pelo Telefone, Sonho Juvenil e Adeus.

O Correio do Povo de 1° de Janeiro de 1909 anunciava: “Funcionarão hoje os seguintes cinematógrafos: Rio Branco – Os Contos de Vovô, Para Ter Felicidade Todo Ano, Fada das Flores, Boa Sorte, As Três Culpas do Diabo e Adeus; Recreio Ideal – Uma Carta Urgente, Um Filho de Família, No País dos Lampiões, Grande Incêndio em Paris, e Um Sogro Intransigente; Variedades – Sebastopol e a Esquadra do Mar Negro, Realejo Encantado, A Menina Florista, Sra. Armanda, A Cartomante e A Mania da Esgrima.

Em 26/3, com muito sucesso foi lançado no Recreio Ideal Ranchinho do Sertão, um filme pequeno de 96 metros, que no entanto buscou na literatura regional a valorização das nossas raízes históricas. A repercussão na imprensa foi expressiva, pois foi uma exibição especial. Para o público, no dia seguinte, com o cinema lotado.

Por questões de melhoramento o Recreio Ideal anunciava sua mudança para o prédio onde funcionou o Hotel Siglo, que estava passando por uma reforma, na mesma Rua dos Andradas, nº 311 e 313, com sala de espera, todo conforto e luxo. Excelentes acomodações para os espectadores e ótimas instalações elétricas. A empresa Baterlô &Cia. contratou na Europa uma variada coleção de filmes de arte para a inauguração, que aconteceu no dia 27 de maio, com a casa lotada, que aplaudiu a perfeição do projetor e os filmes exibidos. Por motivos de luto nacional, o Recreio Ideal reabriu no dia 17 de Junho, após uma exibição especial para a imprensa, no dia anterior, em que foi também exibida a procissão de Corpus Christi realizada no dia 11 e bem filmada. Hirtz continua filmando e registra a Cerimônia de Inauguração da Catedral de Santa Maria, em 8/12/1909. A modernidade se organizava e tinha até Clube: De Gramophones Alliance (sic) avisa aos “assignantes de Club 4 que o primeiro sorteio será dia 17 de janeiro de 1910”.

Em 22/01, no Recreio Ideal, dá-se a exibição de Combate Simulado do Tiro Brasileiro em Canoas. Em 26/1, na Exposição Festa da Uva, no bairro Terezópolis, exibe-se Manobras Militares. No Recreio Ideal, a Cerimônia de Inauguração da Catedral de Santa Maria. Em 13 de novembro Hirtz filma as Regatas Realizadas pela Federação do Remo de Porto Alegre.

O ano de 1911 é de efervescência para o cinema local, no que diz respeito às novidades técnicas, à implantação definitiva do cinema como espetáculo e vida social. O mais importante: o clima estava propício aos trabalhos de filmagens: Inauguração da Estátua do Marechal Floriano Peixoto, documentário exibido em 19/01/1911, no Cinema Odeon, que anunciava um aparelho conhecido por “Auxetephone”. No Cinema Variedades, em 2 de abril, o documentário Scenas do Campo do Paraná. Dando seguimento, no Teatro El Dorado o Cinematógrapho falante de H. Dobeeshein fazia as delícias da burguesia, e da mesma forma um outro Cinematógrapho no Teatro São Pedro. Ambos continuam, nos dois locais, nos dias 16, 17 e 20/4.

No dia 29, na Rua dos Andradas, 365, a inauguração do Cinema Parisiense. E ainda as filmagens, por Isller & Furtado, proprietários do cinema Smart-Salão, da Parada da Briosa Brigada Milita. No cinema Odeon, a projeção do documentário Villa Rio Branco, no Paraná, em 27/06. Porto Alegre, além dos teatros, já contava com seis cinemas. Como consequência, a partir de julho, nota-se na imprensa, seguidamente, a publicação de anúncios da programação dos cinemas Odeon, Royal – que ficava no Café Jacinto –, Smart-Salão e Recreio Ideal, que se destacavam diariamente com anúncios de um quarto de página no Correio do Povo. Em 15 de agosto, em razão da concorrência de mercado, houve uma tentativa de incêndio no Recreio Ideal, que não deu certo, pois à noite a sala já estava funcionando.

Contratado pelo Ministério da Agricultura, Guido Penello, operador cinematográfico, filmava, no dia 27 à tarde, no Campo da Redenção e na Av. 13 de Maio, um corso de carruagens. Junto com cenas filmadas anteriormente no Clube Almirante Barroso e na Rua dos Andradas, realizava um documentário de dez minutos. Um assalto realizado em uma casa lotérica, em 6 de setembro, no centro de Porto Alegre, se transformou num roteiro cinematográfico de repercussão, que ficou conhecido como A Tragédia da Rua dos Andradas, produzido por Eduardo Hirtz, que contratou Guido Penello. O filme foi exibido no Cinema Coliseu no dia 15/09 com quatro sessões, das 7h30 às 10h30 da noite. Foi um documentário de “550 metros”, com “14 quadros”, divulgado com tal intensidade que o Cinema Coliseu foi policiado. No dia seguinte, mais três sessões.

O Variedades inaugurou em 20 de setembro o seu novo e luxuoso salão, com uma bela festa no edifício da antiga Bohemia. No mesmo dia 20, Guido Penello passa por Pelotas, onde filma uma festa no União Gaúcha e o Primo Vescovo di Pelotas, Dom Francisco de Campos Barreto. Em Alegrete, em 3 de outubro, Emilio Diaz fez uma exibição, ao ar livre, na Praça 15 de Novembro, de seu Cinematógrafo, com “vistas” animadas. Em Porto Alegre, Emilio Guimarães, numa produção de Arthur Sampaio, filmou as festas de outubro do “Turner-Bund”, o atual “Sogipa”, que foi exibido no Cinema Variedades. Em Pelotas, em 30/11, o Coliseu Pelotense, visto o sucesso do documentário A Festa da União Gaúcha, exibido duas vezes, resolveu incluí-lo no programa da noite.

O ano de 1912 se apresenta otimista, e o cinema teve um destaque expressivo, como veremos: Cinema Odeon 7/1 pelo “Auxetophone”: Questa Aquella, de Rigoletto, Gaumont Journal nº 56, A Honrada Mulher, drama, A Noiva D’o Ele, “filme d’arte”, e Tentolin Repórter, cômico. No Coliseu, 18/1, o ator português Francisco Santos se apresentava com a peça teatral Filhas do Mal. Em Pelotas, Damasceno Ferreira & Cia., que já tinham  comprado o Cinema Recreio Ideal de Porto Alegre, adquiriram o Parisiense, que passaria a se chamar Cinema Ideal. Na Capital, Eduardo Hirtz, em 26 de janeiro, filmava a Chegada do Senador Pinheiro Machado. A primeira gravadora de discos, a Electrica, anunciava a sua mudança para a Rua dos Andradas, 302. O cinema se instala de todas as maneiras, ampliando o terreno de suas necessidades técnicas: através da filial da Empresa Cinematográfica Internacional do Rio de Janeiro, instalada na rua Andrade Neves, 2, dispunha de um bom estoque de filmes, que recebia semanalmente as últimas novidades, alugava e vendia, fazia orçamentos e montagem completa de cabine para cinemas, possuía laboratório para revelar filmes com assuntos locais, confeccionava títulos e propagandas nos filmes e também comprava aparelhos cinematográficos de segunda mão e dava cursos técnicos.

Em 16/2, na Travessa Payssandú, 21, às 8h da noite, foi inaugurado mais um “cinema popular”. Eduardo Hirtz segue filmando e documentou o Jardim Zoológico do Coronel Ganzo, que foi exibido no Recreio Ideal em 8/3. Em Pelotas, a 24/3, foi inaugurado o cinema Recreio Ideal. Companhia Telephonica, documentário realizado em Porto Alegre, foi exibido no Recreio Ideal em 14/04. Mais um cinema é inaugurado, às 6 horas da tarde, na rua João Alfredo, 178, o Cinema Nollet de Cypriano Barcellos & Cia. No dia anterior houve uma sessão especial para a imprensa, com os seguintes filmes: Soberano Jornal nº1”, Madame Rex, As Penas do Infiel e Pés Descompassados. Em Rio Grande, em 7/5, foi inaugurado mais um cinema, o quarto da cidade, com promessas de mais um… Novamente a Procissão de Corpus Christi foi filmada, agora por Issler & Furtado. Emilio Guimarães, “photo-cinematographista”, também continua filmando.

O primeiro filme que ultrapassou as fronteiras do Estado foi A Chegada do Senador Pinheiro Machado, 400 metros, de Eduardo Hirtz, no Rio de Janeiro. A Exposição Agropecuária de Porto Alegre foi documentada e Emilio Guimarães foi encarregado de fazer uma reportagem fotográfica da revista Fon Fon do Rio de Janeiro. Em 10/5, o Cinema Nollet exibe os filmes: Casa Sem Filhos, drama, Uma Grande Caçada de Urso Branco, natural, Malicia de Mulher, cômico, e Procissão de Corpus Christi em Porto Alegre. Na Exposição Agropecuária, dia 15/5, foi exibido o documentário sobre a empresa de Fibras Rio Grandense. No dia 17/5, Issler & Furtado filmaram o trabalho da firma Bromberg & Cia. No local onde era o Cinema Variedades, na Praça Senador Florencia, estava sendo construído um edifício por Antonio Tavora Filho. Os proprietários do Recreio Ideal, Damasceno Ferreira & Cia. começaram a negociar o arrendamento do teatro que estava sendo feito no prédio, e transferir o Recreio Ideal para ali. O negócio aumentava e, nos altos do Mercado Público, Blanchart & Guimarães representavam a Eclair Films no Rio Grande do Sul. Na cidade de Rio Grande o Cinema Rio Branco era inaugurado em 13 de junho. No dia 3/7, às 6 horas da tarde, o popular Smart-Salão deu uma sessão especial à imprensa, sendo exibidos bons filmes. Reabriu para o público no dia seguinte, completamente reformado e com grandes melhoramentos. Issler & Furtado perderam a representação da Cia. Internacional Cinematographica, do Rio de Janeiro, para a Empresa Photo Cinematographica, que, além da distribuição, fazia a manutenção de aparelhos, instalações elétricas e filmagens. Os proprietários do Recreio Ideal foram nomeados agentes gerais, no estado, da Companhia Cinematográfica Brasileira.

O cinema por sua vez estava interferindo no teatro, que perdia público. Para proteger o teatro contra a invasão dos cinemas, que se multiplicavam, os primeiros sintomas surgem na Alemanha, com intenções de solicitar dos poderes públicos maior controle e autorização, além de uma censura cinematográfica, a bem da arte e da decência, com insinuações referentes ao Brasil. Ao lado do Cinema Variedades havia o Café América, e o dono do cinema, Arthur Sampaio, comprou o local por “30$000,00” para tornar mais confortável o cinema. Viajou para o Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires, para verificar a modernidade dos cinemas. O Café América mudou-se para outro local em frente à confeitaria Central. No dia 9/7 o Smart-Salão exibiu para a imprensa, às 6 horas da tarde, o documentário da Exposição Agropecuária, com 1.200 mts., e no dia seguinte para o público.

As reformas do Cinema Variedades, que ficou mais espaçoso, revelou uma certa visão preconceituosa, pois foram feitas duas salas de espera. Uma para a primeira e a outra para a segunda classe. A primeira classe com mais conforto, com um salão bem mobiliado, em que as famílias poderiam se servir de doces, licores, gelados etc… No Recreio Ideal, houve mudanças na programação. Os filmes que eram exibidos à noite não eram repetidos no outro dia, no mesmo horário em que eram exibidos os novos filmes. Para solucionar o problema, o cinema passou a ter sessões de matinê, das 3 às 6 horas da tarde, com os filmes da noite anterior. A novidade da empresa foi a criação do Recreio-Ideal Jornal, semanalmente, que além de documentar fatos importantes, registrava o “mundo chic” porto-alegrense, filmando senhoritas, senhoras e cavalheiros que desfilavam pela Rua da Praia.

Foi nessa efervescência que o nome de Emilio Guimarães surgiu no noticiário da imprensa e com repercussão. No dia 13 de julho, os jornalistas foram convidados a visitar o estúdio do “photocinematographico” instalado no Recreio Ideal, onde foram filmados. Depois os visitantes assistiram ao trabalho de revelação, fixação e lavagem no filme. Esse serviço foi realizado em poucos minutos. No dia seguinte os jornais divulgaram a inauguração do estúdio. Precisamente dois dias após as notícias, Arthur Sampaio, proprietário do Variedades, enviou uma carta ao Correio do Povo, onde entre outras coisas dizia: “Sou informado de que Emilio Guimarães vai exibir, no Recreio Ideal fitas sobre a sociedade Turner Bund, as regatas do Club Almirante Barroso e outras de meu atelier “photocinematographico”, mas é preciso que o público saiba, desde logo, que por essa outra indébita apropriação de fitas, bem como de aparelhos, machinas e outros objetos que subtraiu de meu estabelecimento, terá de responder, além do processo pelo crime de estelionato acima aludido, ao de furto, previsto no art. 330 do Cod. Penal”. A repercussão foi grande na Capital, e Emilio Guimarães, através do Correio do Povo, no dia seguinte, o desafiou sob o título: “Um Duelo?”, com duas testemunhas. Sampaio em resposta confirmou, mas que a arma seria dele. Após várias interferências de amigos, acabou em nada… O certo é que Emilio Guimarães realizou 21 edições do Recreio – Ideal – Jornal, documentários sociais e comercias.

Os cinemas continuavam lotados. Em Bagé, no dia 19/9, Francisco Santos, empresário teatral, anunciava que iria montar, no estado, com o nome de Guarany, um estúdio de filmes e que já tinha encomendado os aparelhos necessários. Na realidade a Guarany Films foi inaugurada em 16/01/1913, na cidade de Pelotas, e tinha como sócio Francisco Xavier. Fazer cinema em Pelotas não era novidade, pois José Brizolara, proprietário de uma clicheria, se dedicava a documentar a paisagem da região. Também os Irmãos Grecco, financiados por Eduardo Hirtz, da mesma forma realizavam seus pequenos documentários, como Club dos Atiradores, lançado em 12/02/1913 no Recreio Ideal de Pelotas. José Brizolara filmou: Uma Excursão pelo Rio São Gonçalo, Da Boca do Arroio Pelotas ao Porto da Cidade, Panorama da Represa e Uma Excursão ao Cerro do Capão Leão, que eram exibidos na cidade.

Consta que Francisco Santos praticamente chegou filmando, dias depois de sua primeira apresentação, pois já tinha uma câmera de filmar, faltando apenas um laboratório para revelação dos negativos e cópias – o que não foi difícil, já que Brizolara também filmava e certamente possuía um pequeno laboratório, permitindo as primeiras experiências: Centenário e Exposição de Bagé, Um Curtume Pelotense, Uma Visita à Hidráulica de Bagé (em outubro) e Manobras em Jaguarão (em novembro).

Vamos encerrar por aqui, visto que a história do cinema é longa. Mesmo assim procurei dar uma síntese, preparativa, dos anos 10, para posteriormente dar sequência, abordando os períodos importantes da evolução cinematográfica no Rio Grande do Sul. Isto mereceu uma incansável pesquisa, durante anos, fundamental ao resgate de sua trajetória histórica e da mesma forma para a recuperação de filmes de 1909, 1912, 1913 e outros da década de 20, 40, 50, só para citar alguns, conforme veremos no meu próximo artigo ou nos livros que estão à espera de uma edição.


Antônio Jesus Pfeil é cineasta, pesquisador e historiador, com vários livros publicados, entre os quais Canoas, Anatomia de uma Cidade“, 1992 e 2º vol. em 1995, e Coisas Nossas – Vozes do 1º Musical Brasileiro, livro e CD (1996).

Clemente Freitas, o pioneiro da Arte Cinematográfica em Sergipe

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 9 Comentários

por Djaldino Mota Moreno

Introdução

A falta de uma política cultural pelos órgãos no Estado de Sergipe prejudica em demasiado a práxis em prol da cultura e da arte, principalmente com referência à memória cultural, relegada ao ostracismo. Os dirigentes culturais ainda não tomaram consciência da necessidade de um programa mais efetivo e sistemático, com respeito à preservação da memória cultural, referente aos fatos ocorridos em nosso estado.

Poucos e raros pesquisadores realizam trabalhos na área de cinema em Sergipe. Normalmente os trabalhos são feitos sem o mínimo apoio para a execução de levantamento de dados visando à concretização de suas pesquisas. Os pesquisadores sergipanos são verdadeiros batalhadores, quando resolvem partir para a elaboração e realização de pesquisas, que visam registrar o nosso passado nas áreas da cultura e da arte.

Diante dessas observações não muitos animadoras, mas com espírito de luta e vontade de realizar e concretizar, é que resolvi pesquisar a vida do cinegrafista e fotógrafo amador Clemente Freitas, que apesar de ter nascido em Maruim/SE, praticamente viveu a maior parte de sua existência na cidade de Estância/SE, onde documentou com maestria os acontecimentos ocorridos.

A fim de obter as mais importantes informações para esta pesquisa, foram delimitados vários aspectos a serem levantados sobre o apaixonado pelas artes visuais Clemente Freitas:

No intuito de acumular dados os mais precisos possíveis sobre Clemente Freitas, procurei levantar os seguintes referenciais:

Tive conhecimento sobre Clemente Freitas em 1972, durante a realização do 1° Festival de Arte de São Cristóvão, em Sergipe. Na oportunidade foi realizado paralelamente o 1° Festival Nacional de Cinema Amador, que coordenei. Para participar da comissão julgadora do Festival convidei o curador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Sr. Cosme Alves Neto, hoje já falecido, que teve contato com Clemente Freitas em Estância/SE, tendo, inclusive, levado um de seus filmes para compor o acervo da Cinemateca.

A partir desse fato, passei a me interessar pelo trabalho realizado pelo cinegrafista e fotógrafo Clemente Freitas, já que foi uma descoberta bastante interessante, pois passei a ter conhecimento sobre alguém que desenvolvia um trabalho na área cinematográfica no interior do estado de Sergipe.

Após o falecimento de Clemente Freitas, que ocorreu em 1974, o seu inestimável acervo ficou com os amigos Carlos Oliva Sobral e Evaldo Costa. Como Evaldo Costa conhecia por demais o trabalho realizado com esmero pelo Clube de Cinema de Sergipe, que mantinha diversas atividades, compreendendo mostras, seminários e cursos na capital sergipana, resolveu doar o acervo de filmes na bitola de 16 mm de Clemente Freitas para o Clube, a fim de preservá-los.

Diante da inestimável e importante doação para a preservação da memória cultural de Sergipe, na área cinematográfica, iniciei com o companheiro cineclubista João Ulisses de Melo Filho a catalogação dos filmes e o registro dos assuntos contidos. Entretanto, tivemos que interromper o trabalho pelo fato de que alguns filmes, por estarem retorcidos, quebravam constantemente ao passar no projetor de 16 mm. Devido ao problema, a diretoria do Clube de Cinema de Sergipe decidiu por unanimidade enviar os filmes para depósito na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pela necessidade de preservação dos filmes de Clemente Freitas e Walmir Almeida (fotógrafo profissional que na década de 60, durante o governo de Luiz Garcia, realizou e produziu cinejornais como o Cine Produções Atalaia, composto de reportagens exclusivas sobre o estado de Sergipe, sendo inclusive correspondente da Atlântida de Luiz Severiano Ribeiro).

Esta decisão foi tomada na reunião da diretoria do Clube de Cinema de Sergipe, realizada no dia 21 de setembro de 1988, às 19h, na doceria Doces Docê, na cidade de Aracaju/ SE, após ampla exposição que fiz, como Presidente do Clube, explicando que os filmes dos sergipanos Clemente Freitas e Walmir Almeida estavam se deteriorando e que o Sr. João Luiz Vieira, diretor, e o Sr. Cosme Alves Neto, curador da Cinemateca do MAM/RIO, colocaram-se à disposição para recebê-los, com a finalidade de tratamento, conservação e preservação. Participaram da reunião do Clube de Cinema de Sergipe os seguintes membros: Djaldino Mota Moreno, Presidente; Austregésilo Júnior Aragão de Melo, Secretário-geral; Cristiano Vieira da Costa, 1° Secretário, e o Sr. Justino Alves Lima, Tesoureiro.

A Cinemateca do MAM/Rio comprometeu-se a somente liberar os filmes enviados para pesquisa com ordem por escrito do Clube de Cinema de Sergipe. O tesoureiro do Clube de Cinema de Sergipe acatou a proposta do envio dos filmes para preservação na Cinemateca do MAM/Rio, contanto que a situação dos filmes de Clemente Freitas e Walmir Almeida tivesse uma ampla divulgação na imprensa sergipana.

A medida tomada pela Diretoria do Clube de Cinema de Sergipe foi sem sombra de dúvida de extrema importância para a preservação e conservação da obra fílmica de Clemente Freitas e Walmir Almeida, já que no Estado de Sergipe não existe nenhum organismo público ou privado com condições de tratamento técnico adequado para o devido arquivo de obras cinematográficas. No dia 10 de novembro de 1988, o Clube de Cinema de Sergipe, através do seu Presidente, Djaldino Mota Moreno, encaminhou para a Cinemateca do MAM/Rio 70 filmes dos realizadores sergipanos Clemente Freitas e Walmir Almeida para o devido tratamento e laudo técnico, solicitando, inclusive, um orçamento para tiragem de novas cópias em vídeo e em 16 mm.

Junto com os filmes enviados para a Cinemateca do MAM/Rio, foram também o Cinejornal Ponte Cinematográfica, que inclui reportagens de Walmir Almeida, e Cine-Jornais Herbert Richers. No dia 29 de novembro de 1988, o Diretor da Cinemateca do MAM/Rio, João Luiz Vieira, encaminhou correspondência para o Clube de Cinema de Sergipe, dizendo da imensa satisfação do material cinematográfico recebido para depósito. Ainda na carta, expressou que “são iniciativas como esta que não só contribuem efetivamente para a recuperação da memória audiovisual do país como, em grande parte, justificam o nosso próprio trabalho enquanto um centro avançado de prospecção, conservação e guarda do acervo brasileiro”.

No dia 30 de junho de 1991, o colega cineclubista Augusto César Macieira de Andrade, hoje já falecido, que morava no Rio de Janeiro, estivera na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, como representante do Clube de Cinema de Sergipe, a fim de acelerar o trabalho de identificação, catalogação e levantamento das condições técnicas do material fílmico de Clemente Freitas e Walmir Almeida, diante do fato de que a Cinemateca estava naquela oportunidade sem pessoal suficiente para levar adiante projetos especiais. Augusto César manteve contato com o técnico em preservação da Cinemateca do MAM/Rio, o Sr. Francisco Sérgio Moreira, ficando estipulado um calendário para que o mesmo iniciasse o trabalho de verificação e classificação dos filmes.

O ator e diretor teatral e cinematográfico Augusto César Macieira de Andrade realizou o levantamento dos assuntos dos filmes na bitola em 16 mm de Clemente Freitas e de Walmir Almeida, além de verificar o estado técnico de cada película. Os filmes em 8 mm de Clemente Freitas foram catalogados por mim e pelo fotógrafo Evaldo Costa, compreendendo inclusive os assuntos registrados.

Convém frisar que o cinejornalismo foi o gênero de cinema desenvolvido pelo cinegrafista Clemente Freitas. O cinejornalismo é uma maneira de noticiário que tem como meio de difusão o cinema. É, portanto, um filme de curta duração que basicamente era exibido como complemento de filmes de longa metragem em exibições comerciais. Com o crescente desenvolvimento da ‘IV, evidentemente, o cinejornal deixou de existir, pois os acontecimentos registrados eram exibidos nas salas de cinema uma semana depois. Já a TV realiza um noticiário diário, com transmissão ao vivo, sendo assim algo muito mais dinâmico e atualizado nas informações divulgadas.

Clemente Freitas foi, portanto, um cinegrafista que, operando uma câmera, realizou diversas reportagens cinematográficas. Isto fica bastante evidenciado em seus filmes diante de sua constante preocupação em registrar fatos que ocorreram na cidade de Estância/SE, quando documenta desfiles estudantis, procissões, partidas de futebol, festas cívicas, aspectos paisagísticos, além de documentar as enchentes dos rios Piauitinga e Piauí, e as festas de São João, que são bastante concorridas pelas batalhas de espadas e busca-pés.

Com a publicação desta pesquisa, espero estar contribuindo para resgatar a memória da história da arte cinematográfica em Sergipe e no Brasil, para que as futuras gerações e especialmente os interessados na arte da imagem em movimento possam conhecer o árduo e apaixonante trabalho desenvolvido por aqueles que tinham como meta o registro da realidade através do filme documental e do cinejornalismo, este último o gênero que era realizado com dedicação e entusiasmo pelo cinegrafista amador Clemente Freitas.

Os depoimentos que estão registrados nesta pesquisa darão condições de uma avaliação sobre o trabalho desenvolvido pelo mestre Clemente Freitas, que tinha uma constante preocupação em documentar o cotidiano. Esta pesquisa procura, portanto, demonstrar o pioneirismo e a sensibilidade criativa do fotógrafo e cinegrafista Clemente Freitas, como também a sua indiscutível necessidade e paixão pela documentação visual.

Clemente Freitas, o Fotógrafo e Cinegrafista de Estância/SE

Clemente Freitas nasceu na cidade de Maruim, no estado de Sergipe, no dia 18 de janeiro de 1899, filho de Clemente Leopoldino Freitas e Josina de Oliveira Freitas. Faleceu na cidade de Estância, em 1º de janeiro de 1974, de pneumonia.

Era um fotógrafo amador, e o seu laboratório estava instalado na casa de propriedade da Fábrica Santa Cruz, que fica ao lado da Igreja do bairro Santa Cruz. Fazia diversas experiências na confecção de equipamentos, como ampliadores e tanques de revelação para filmes em cores. As experiências desenvolvidas por Clemente Freitas na revelação de filmes na bitola 8 mm, em cores e preto-e-branco, não atingiram boa qualidade. Todos os filmes eram mudos e realizados nas bitolas de 8 mm e 16 mm, em preto-e-branco e em cores.

Clemente Freitas fazia exibições de seus filmes nos seguintes locais:

Na década de 60, Clemente Freitas fundou o Lions Clube de Estância, ao lado dos companheiros Antonio Pádua, Raimundo Luiz, Celso Oliva Sobral, Raimundo Juliano, José Lino Oliveira e José Milane. Ele gostava de criar pássaros e tinha o hábito de gravar o canto dos passarinhos no seu potente gravador Akai. Possuía, portanto, uma grande coleção de gravações de cantos de pássaros raros. Não bebia e não frequentava bares. Era uma pessoa sistemática e bastante caprichosa em tudo o que desenvolvia. Apreciava a música clássica, possuindo bom acervo de discos.

Clemente Freitas foi chefe do escritório da Companhia Industrial de Estância de 1° de outubro de 1940 até se aposentar no ano de 1962. Foi guarda-livros, que hoje corresponde à função de contador, do Banco Mercantil nas cidades de Aracaju, Propriá e Estância. Dirigiu a Sulgipe, empresa privada de energia elétrica da cidade de Estância, no estado de Sergipe, desde a sua fundação. Fazia parte do Conselho da Sociedade de Beneficência Amparo de Maria, que administra o Hospital de Estância, fundado em 1867. Foi também um dos fundadores da Associação Comercial da cidade de Estância. Era proeiro da equipe de remadores do Cotinguiba Esporte Clube em Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Foi também sócio do Clube de Regatas, hoje a Capitania dos Portos em Aracaju.

Um fato que merece o devido registro, e sem sombra de dúvida marcou a vida do cinegrafista e fotógrafo, foi o ocorrido em 1942, quando era chefe do escritório da Fábrica Santa Cruz no município de Estância, cargo que hoje corresponde ao de gerente. Na ocasião, ocorreu o torpedeamento de navios por submarinos alemães na costa sergipana, na Segunda Guerra Mundial, na segunda quinzena de agosto. A lancha Maria Auxiliadora, de propriedade da Fábrica Santa Cruz, com capacidade para cerca de 100 pessoas, que tinha como responsável o comandante Manoel Américo Pessoa, foi liberada para fazer o salvamento no Rio Real dos tripulantes e passageiros dos navios atingidos.

Os navios mercantes torpedeados pelo submarino alemão U-507, sob o comando do Capitão-de-Corveta Harro Schacht, na costa sergipana foram os seguintes:

Navios Passageiros Tripulantes Sobreviventes Mortos Datas
Baependi 18 18 270 15/08/1942
Araraquara 8 3 131 15/08/1942
Almirante Aníbal Benévolo - 4 150 16/08/1942
Arará - 15 20 17/08/1942
Itagiba 95 50 36 17/08/1942
Jacira 1 5 - 19/08/1942
Total 122 95 7

Fonte: A Marinha na 2ª Guerra Mundial

Convém registrar, portanto, que 607 pessoas, entre passageiros e tripulantes, morreram durante os ataques dos submarinos alemães, que torpedearam os navios que navegavam pela costa sergipana, demonstrando assim o horror que foi a 2ª Guerra Mundial.

Diante desse fato histórico, salientamos a importância que tiveram os tripulantes da lancha Maria Auxiliadora e os habitantes da cidade de Estância no salvamento de passageiros e tripulantes dos navios afundados, com a participação efetiva do contador, fotógrafo, cinegrafista e tripulante Clemente Freitas.

Clemente Freitas era um indivíduo extremamente humanitário, pois se preocupava com a situação de vida das pessoas que o cercavam. Um fato que pode demonstrar esse humanismo é o do garoto José Alves, de mais ou menos 12 anos de idade, que veio de Simão Dias para a sua casa e, não querendo estudar, foi colocado para trabalhar na Fábrica Santa Cruz, onde não se adaptou. Clemente Freitas, então, lhe deu determinada importância em dinheiro para que viajasse para o Rio de Janeiro. Hoje, José Alves é aposentado da Oficina Naval e compadre de Clemente, pelo batismo de seu filho com o seu nome, demonstrando assim gratidão pelo apoio recebido.

Clemente Freitas procurava sempre transmitir seus conhecimentos aos colegas e amigos que apreciavam as artes visuais. Colaborava constantemente com as obras assistenciais da cidade de Estância, demonstrando dessa forma o seu humanitarismo pelos mais necessitados, participando da diretoria de diversas entidades filantrópicas. Como administrador da Fábrica Santa Cruz e da Sulgipe, mostrou competência e integridade. Isso pode ser comprovado pela sua permanência durante mais de 40 anos dirigindo as empresas do senador Julio Leite, no município de Estância/SE.

No campo das artes visuais, compreendendo o cinema e a fotografia, Clemente Freitas realizou bom trabalho de documentação do cotidiano, demonstrando habilidade técnica e sensibilidade artística, contribuindo assim para o registro da memória sergipana.

Depoimentos sobre Clemente Freitas

Evaldo Costa de Jesus – Fotógrafo profissional

“Conheci Clemente Freitas aos 13 anos de idade, trabalhando com ele na Companhia Industrial de Estância (Fábrica Santa Cruz). Aos 18 anos, eu trabalhava no escritório da fábrica e ele era guarda-livros (contador). Ele tinha a dedicação de fotografar e filmar enchentes para o dono da fábrica, Dr. Jorge Prado Leite, como documento.

Clemente Freitas não gostava de fotografar pessoas ou grupos, mas se interessava em registrar festividades e paisagens da cidade de Estância. Ele começou a se interessar por fotografia através dos primeiros fotógrafos de Aracaju, Humberto Aragão, Hugo Ferreira e Lélio Fortes, que já tinham grande experiência na área e participavam de concursos e salões de fotografia e de publicações de revistas do sul do país. Era muito amigo do fotógrafo e cinegrafista Edirane Souza, da Rede Globo de Televisão. Edirane usou equipamento altamente moderno na época, uma filmadora de 16 mm de Clemente Freitas, da marca Payard Bolex, que utilizava três lentes tipo tambor, para fazer os primeiros noticiários da Rede Globo de Televisão.

Eu e Clemente revelávamos filmes na bitola 8 mm, com equipamentos adquiridos através da Ótica Santana em Aracaju e a Fotóptica em São Paulo. O processamento que nós fazíamos era através de livros que registravam as fórmulas e por manipulação química. Preparávamos as fórmulas do revelador, do interruptor e fixador, isto para os filmes em preto-e-branco. O filme colorido era processado da mesma forma, ou seja, manipulando toda a fórmula e dando ao filme sete banhos diferentes.

Clemente Freitas e eu fazíamos muito trabalho de pesquisa fotográfica e cinematográfica para o aperfeiçoamento do resultado das fotos e dos filmes. Clemente chegou a fazer experiências de viragem, em prata, ouro e sépia, conseguindo às vezes excelente qualidade, dependendo do produto químico adquirido. Ele mandava buscar material de altíssima qualidade em outros países, como Panamá, Alemanha, Estados Unidos e Canadá. Os filmes em 16 mm e Super 8 mm eram revelados na Cinótica, em São Paulo. Nos filmes de Clemente Freitas eram registrados os assuntos, através de letreiros, que eram feitos com uma placa com trilho, com números e algarismos móveis.

Como amigo, não existia igual, e como profissional era rigorosíssimo, não aceitando nenhuma falha no trabalho, embora fosse compreensivo. Ele tinha um conhecimento geral fora de série, pois lia muito, estando sempre atualizado. O rádio que ele adquiriu na década de quarenta, de marca Transglobo, fabricado pela Philco, sintonizava todo o globo terrestre e o deixava informado de tudo o que acontecia. Em geral ele adquiria os equipamentos que existiam de melhor no mercado nacional e internacional: rádio, máquinas fotográficas, filmadoras e produtos químicos.

Clemente Freitas tinha um hobby: gostava de fotografar letreiros das casas comerciais que continham erros, e também apreciava registrar detalhes da natureza, como flores, insetos, gotas de água, reflexos e objetos em contraluz.

Para mim Clemente foi excelente orientador e crítico construtivo em fotografia e cinema, pois aprendi muito com seus ensinamentos. Tínhamos uma constante troca de informações técnicas.

Ele adorava passarinhos e peixes, chegando ao ponto de fazer gaiolas de alta qualidade. Era um fotógrafo amador com muita experiência técnica e não se interessava pela parte comercial. Ele gostava de fotografar eventos que aconteciam na cidade de Estância e oferecia as fotos aos amigos que nelas apareciam.

Era uma pessoa muito bem quista na cidade de Estância, pelo fato de ser o chefe do escritório da Fábrica Santa Cruz, que tinha mais de mil empregos diretos, e era membro do Rotary e Lions Clube. Ele tinha um círculo de amizade muito grande, pois era muito respeitado pela população da cidade de Estância, sendo sempre convidado para participar de vários eventos.

Clemente Freitas foi um dos pioneiros do esporte náutico motorizado em Estância. Ele, o Dr. Jorge Prado Leite e João Batista Nascimento (Juju) eram proprietários das lanchas Jangadeiro, Lambari e Três Irmãos, respectivamente. Ele também foi o maior incentivador para que eu consertasse má­quinas fotográficas de terceiros, pois me entregava suas máquinas para conserto e isentava-me caso eu não conseguisse consertá-las. Isto para mim era uma demonstração de muita confiança que ele depositava em meu trabalho.

Diariamente às 17h, Clemente saía com o médico Paulo Amaral para ir à propriedade Fazenda Paraíso do velho Costinha (Antonio Costa Carvalho) do cartório, meu tio, para bater um papo, atualizando-se sobre assuntos mundiais. Eu gostava de participar muito dessa reunião, que durava aproximadamente uma hora, com a finalidade de aprimorar os meus conhecimentos.”

João Freire Amado – Fotógrafo amador

“Tive oportunidade de conhecer Clemente Freitas através do meu pai, João de Faria Amado, que realizava serviços de mecânica de precisão, como por exemplo, duplicador de slides e coladeira de filmes 8 mm, 16 mm e 35 mm. Esses equipamentos eram utilizados por Clemente no seu trabalho de duplicar slides e montar filmes. Em 1967, tive uma aproximação de fato com ele para obter orientações de como fazer uma câmara escura.

Devido a esse relacionamento com meu pai, a amizade com Clemente Freitas tornou mais fácil obter conhecimentos sobre fotografia com profundidade, pelo grande manancial de informações que ele possuía. Clemente era uma pessoa superexigente, sempre adquiria os equipamentos mais modernos de fotografia e cinema da época. Recebia revistas distribuídas pela Fotóptica para sempre se manter atualizado sobre a arte fotográfica. Era um incentivador e consultor sobre fotografia e cinema na cidade de Estância, e diversos fotógrafos e cineastas amadores recorriam a ele para obter informações sobre como fotografar, filmar e revelar filmes.

Ele passava todas as suas experiências em cinema e fotografia para quem o procurava. Não guardava segredo sobre o assunto. Um dado técnico bastante interessante que ele sempre dizia: “deve-se procurar enquadrar o assunto fotográfico respeitando a diagonal do quadro, mantendo assim o seu equilíbrio”. Nos casos de fotografias em cores, ensinava, “deve-se procurar sempre compor as imagens considerando o amarelo e o vermelho em 1° plano e o verde e azul no 2° plano”.

Ele ressaltava que “nos meses de abril e setembro se obtém fotografia em cores de boa qualidade, devido à luminosidade média da época”. Para fins fotográficos, Clemente ensinou-me que se deve “enxergar” o mundo de acordo com o filme que se utiliza, preto-e-branco ou colorido. Ele também dizia que “o bom fotógrafo reconhece o momento exato de fotografar”.

Clemente Freitas era uma pessoa bastante franca nos diálogos, muito sério, e fazia crítica construtiva sobre o meu trabalho, sempre dando orientações sobre a melhor maneira de fotografar. Cito um fato que ocorreu na ocasião da comemoração dos 10 anos da Escola Técnica de Comércio de Estância, que era mantida pela Associação Comercial de Estância. Numa das noites em que houve a sessão em que “Seu” Clemente apresentava seus filmes, ele escutou um gracejo de um estudante e, não tolerando o ocorrido, mandou acender as luzes do salão e cancelou a projeção, considerando que as pessoas presentes não estavam em condições de apreciar o seu trabalho.”

Lineu Lins – Fotógrafo profissional

“Clemente Freitas era um apaixonado pela imagem, seja cinema ou fotografia. Ele demonstrava simpatia por todas as pessoas que comungavam o mesmo gosto. Abria as portas de sua casa com muita facilidade e tinha orgulho de mostrar os seus equipamentos cuidadosamente preservados, sendo, portanto, uma pessoa extremamente cuidadosa e organizada. Era um excelente companheiro e gostava de um bom papo com os amigos.

No Mangue Seco, em Estância/SE, onde tinha uma casa, convidava amigos e apaixonados por fotografia, sendo responsável pela divulgação do material que retratava as “Dunas do Mangue Seco”, dos fotógrafos Celso Oliva, Hugo Ferreira e Lélio Fortes. As fotos desses consagrados fotógrafos sergipanos participaram de diversos salões de fotografias em vários países do mundo. Clemente gostava muito de ler, principalmente sobre fotografia, e tinha uma filosofia de vida que levava à tranquilidade e ao otimismo. Suas fotografias documentavam o cotidiano da cidade de Estância e seus habitantes, demonstrando uma preocupação de contar uma história.

Clemente Freitas era um indivíduo bastante ousado, pois mantinha correspondência com a Fotóptica, em São Paulo, onde comprava os equipamentos recém-lançados.”

Walmir Lopes de Almeida – Cinegrafista e fotógrafo profissional

“O primeiro contato que tive com Clemente Freitas foi quando ele me trouxe filmes na bitola 8 mm para enviar para revelar no laboratório da KODAK, no Rio de Janeiro, através da minha firma Cine-Foto Walmir, situada na Praça Olímpio Campos, em Aracaju. Quando os filmes revelados chegaram, ele convidou-me para assisti-los em sua residência na cidade de Estância. Fui, então. Nesse dia ficamos conversando até tarde da noite. Ele me pedia opinião sobre os filmes. O trabalho dele era bom, pois era um apaixonado por cinema.

Clemente era um gentleman atencioso, educado e bastante comunicativo. Filmava as coisas de Estância, como as belas praias do Saco e Abaís, e de Mangue Seco na Bahia. Utilizava para fotografar e filmar material da Kodak, e muitas vezes levava os seus filmes para revelar na cidade do Rio de Janeiro, quando tinha oportunidade de viajar. Ele apreciava muito ler sobre assuntos de fotografia e cinema, e sempre que podíamos, e tínhamos tempo, trocávamos publicações para aprimorarmos os nossos conhecimentos.

Era uma pessoa extremamente preocupada com o trabalho que desenvolvia, muito humano em suas ações e tinha cultura geral. Nós tínhamos uma amizade muito sincera. Ele era uma pessoa de bom papo e conversávamos sobre diversos assuntos, pois ele gostava de estar sempre atualizado.

Acredito que, quando Clemente Freitas me procurou para revelar seus filmes, foi com o interesse de se aproximar e fazer amizade, assim como trocarmos informações sobre fotografia e cinema.”

Conteúdo dos Filmes de Clemente Freitas

FILMES NA BITOLA 8 mm

Obs.: Na 3ª parte do filme, o colorido está descorado.

Obs.: a lª parte do filme está com o colorido descorado. Na 2ª parte, a “Caravana da Cultura”, o início do filme apresenta as seguintes personalidades: José Carlos Teixeira, Maria Eugênia Fontes Souza Teixeira, Paulo Amaral, Pascoal Carlos Magno.

Obs.: Na 2ª parte do filme o colorido está descorado.

Obs.: Nas 1ª e 3ª partes, os filmes são em Preto-e-branco e as imagens estão escuras.
FILMES NA BITOLA 16 mm

Bibliografia Consultada

DIAS, José Umberto. Nordeste, Cinema e Gente, Filme Cultura. Rio de Janeiro, Embrafilme, 13 (35-36): 21-5, julho/ago/set. 1980.

GAMA, Arthur Oscar Saldanha da e MARTINS, Hélio Leôncio. A Marinha na 2ª Guerra Mundial. Editora Capenú, 1982.

LIMA, Justino Alves. O Cinema em Sergipe, s.n.t.

MORENO, Djaldino Mota. Cinema Sergipano, Catálogo de filmes. Aracaju, 1998.

Material Pesquisado

Arquivo fotográfico do Dr. Jorge Prado Leite, Diretor Superintendente da Companhia Industrial de Estância.

Arquivo fotográfico de Clemente Freitas, que está guardado pelo Sr. Carlos Oliva Sobral.

Filmes na bitola 8 mm, que foram doados ao Clube de Cinema de Sergi­pe pelo fotógrafo Evaldo Costa de Jesus.

Filmes na bitola 16 mm, que se encontram na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que foram depositados pelo Clube de Cinema de Sergipe, após doação do fotógrafo Evaldo Costa de Jesus.

Ata da reunião do Clube de Cinema de Sergipe do dia 21 de setembro de 1988.

Correspondência expedida pelo Clube de Cinema de Sergipe, no dia 10 de novembro de 1988, para a Cinemateca do MAM/Rio.

Correspondência expedida pela Cinemateca do MAM/Rio, no dia 29 de novembro de 1988, para o Clube de Cinema de Sergipe.

Carta n° 002/98, Rio de Janeiro/RJ, expedida pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, no dia 12 de janeiro de 1998, para o Dr. IVAN SANTOS LEITE, Secretário de Estado da Indústria, do Comércio e Turismo/SE.


Djaldino Mota Moreno é Coordenador do Núcleo de Sergipe do CPCB

Uma Missionária da Pesquisa

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB Nenhum Comentário

por Vladimir Carvalho

Brasília é a capital da república, referência mundial pelo seu moderno traçado urbano e genial arquitetura, tombada como patrimônio cultural da humanidade, e goza da fama de ter completado a chamada Marcha para o Oeste, que nesses quase cinquenta anos de existência ensejou significativas transformações no país com a sua presença no seu centro geográfico. Entretanto, no âmbito das artes e da cultura, a despeito de seu desenvolvimento socioeconômico, com uma população que já ultrapassou a casa dos dois milhões e meio de habitantes, a cidade ainda padece de lacunas que já deviam há muito ter sido superadas.

Duas delas – para dar exemplo – saltam aos olhos dos especialistas e dos seus habitantes: até hoje Brasília não tem a sua cinemateca, como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, a despeito de ter sido aqui que surgiu o primeiro curso regular de cinema, funcionando na UnB nos meados de 1960, sob a inspiração e direção do eminente e saudoso Paulo Emílio Salles Gomes. Como também não dispõe, a essa altura “do campeonato”, do seu museu de arte com projeto que de fato supra a demanda represada e que ficou só na saudade, desde quando o clarividente e operoso Mário Pedrosa propôs a criação de um original Museu da Civilização Brasileira, em tudo adequado ao seu perfil, ainda na época de sua inauguração.

Mesmo assim, no caso do cinema – e isso é o que nos interessa aqui – a cidade mantém com ele uma profunda ligação. Primeiro porque desde a sua construção Brasília foi registrada pelo cinema já a partir do dia em que foi lançada a sua pedra fundamental, cercada de enorme pelotão de cinegrafistas, sendo que Juscelino Kubitscheck manteve de plantão aqui uma equipe de filmagem encarregada de acompanhar passo a passo todo o evoluir da obra. Inaugurada Brasília, veio a sua universidade e com ela uma intensa cogitação da arte cinematográfica em torno das figuras de seus primeiros professores, o já citado Paulo Emílio, Nelson Pereira dos Santos, Jean-Claude Bernardet, entre outros que deram vida não só às tarefas didáticas como à própria prática do cinema, dando início a um ciclo de produção que, intermitente ou não, chegou aos nossos dias.

Hoje, com seu festival de cinema consolidado e intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da produção brasileira, de que se tornou a principal vitrine, com seu Polo de Cinema e suas atuantes associações de classe, e um movimentado e rendoso circuito exibidor, Brasília gerou, nessa área, um alentado volume de registros de toda sorte, esparsos e sem sistemática catalogação, que poderia ter outro destino não fosse a indiferença dos setores que por definição têm a obrigação de preservá-lo.

É nesse contexto que surge quase como uma ave solitária a abnegada figura de Berê Bahia. Essa pesquisadora, cujo nome de pia é Berenice Rosalina da Silva, não teve como não adotar o carinhoso apelido que ganhou dos amigos e da sua origem baiana. Ele está possuído da mesma carga sinérgica que emana “da boa terra”, e Berê justifica plenamente a benção telúrica que recebeu do seu chão nativo: é a um só tempo delicada, tenaz e resistente como uma flor de cactus do seu sertão de Jacobina, onde nasceu. Ali sonhava com um mundo que só iria conhecer muito depois; frequentava assiduamente as sessões do cinema local e lia as colunas especializadas das revistas O Cruzeiro e Manchete, fazendo já seu álbum de recortes. Quando deu conta de si, véspera dos exames vestibulares, em janeiro de 1972, tinha arribado para Brasília, disposta como muitos dos seus a iniciar vida nova aqui. Já picada pelo vírus do cinema, trazia na bagagem uma admiração quase fanática pelo cinema de seu conterrâneo Glauber Rocha, sobretudo por causa das repetidas sessões de Deus e Diabo na Terra do Sol, que até hoje enfileira ao lado de Viridiana, de Luis Buñuel, e dos filmes de Fellini, paixões para toda a vida. Cursando Direito (havia de ter um ofício!) na Universidade do Distrito Federal, UDF, depois de largar as aulas de Pedagogia na UnB, Berê sobreviveu como professora primária e como revisora, entre outros bicos. Na faculdade, sempre antenada pelo cinema, ligou-se rápido aos grupos de estudantes que faziam oposição subterrânea ao regime militar. Guarda dessa fase a sua câmera super-8 e a lembrança de um curta inacabado. As ideias fervilhavam em sua cabeça e queria concretizá-la com a câmera que tinha à mão como qualquer jovem que se mirava em Glauber Rocha e sua divisa visionária.

As naturais dificuldades em produzir, entretanto, foram adiando para sempre o projeto de se tornar uma realizadora cinematográfica. Em seu lugar foi se insinuando e se instalando outro perfil mais conforme com as suas condições, o de cineclubista e de militante na política estudantil. Já a essa época enfrentava também o problema de saúde que a acometera desde os sete anos de idade e que se reflete até hoje na dificuldade de locomoção. Mesmo assim, valente como os de sua raça sertaneja, jamais enjeitou parada. Fundou com os colegas de turma o Cine Clube 3X4, na UDF, o primeiro de uma série que se espalhou por Brasília, sempre com sua assistência e participação. Um dia, melhor uma noite, no 3X4 o tempo fechou: a programação foi interrompida, a repressão baixou pesada numa sessão em que se exibia O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person; a luz do auditório foi cortada e a custo a cópia do filme foi salva e remetida de volta à distribuidora. O regime pesava sobre todos e ainda mais sobre aqueles que ousavam enfrentá-lo. Mas Berê e sua turma não se deixavam abater, e os prélios com a ditadura tinham sequência.

De uma outra feita, por ocasião do primeiro ano da morte de Bob Marley, o Cine Clube Gavião e a comunidade do Cruzeiro, de forte presença cultural em Brasília, resolveram prestar-lhe uma homenagem póstuma com um show e a exibição de filmes focalizando a figura do músico, com a colaboração da embaixada da África do Sul. Os cineclubistas, ao comando de Berê, bloquearam parte do trânsito na praça central do bairro. A polícia não se fez esperar, e foi um deus nos acuda. Na confusão, Berê ainda conseguiu lançar mão das bobinas indo literalmente se homiziar na vizinhança, enquanto outra parte dos cinéfilos foi dormir no xilindró. Na sua história também não faltaram os percalços e as tensões de um congresso pela reconstrução da UNE, realizado a duras penas em Piracicaba, São Paulo.

Mas o tempo foi passando e as relações com o cinema e a militância foram se tornando menos turbulentas. Berê acumulava experiência e cada vez mais se aproximava de sua vocação natural para a pesquisa. Sempre fora uma colecionadora inveterada, guardando tudo quanto era recorte de cinema, em especial no que se referia a Glauber Rocha, de quem mantém um alentado arquivo que não para de crescer. Depois o estudo, as mostras, a convivência com os bastidores do Festival de Brasília, as oficinas com especialistas, a leitura apaixonada dos textos de Paulo Emilio, as tarefas que aos poucos foram lhe sendo confiadas, completaram o quadro do seu engajamento definitivo na área da pesquisa. Um dos momentos definidores dessa sua opção, ainda que inconsciente, foi o encontro e a amizade com Maria do Rosário Caetano, na fase em que esta ensaiava seus primeiros passos na imprensa, com ela fundando o chamado CUCA – Movimento Candango de Dinamização Cultural, de existência um tanto meteórica, mas que marcou sobretudo o público jovem sempre interessado no cinema e na música.

Daí por diante, Berê vai entendendo o sentido missioneiro de sua vida em relação ao cinema. O seu amor pela atividade da pesquisa se torna uma espécie de compensação para aquela menina que se fez introspectiva, privada muitas vezes, por conta de sua saúde precária, dos folguedos com as outras crianças, e poupada em casa de tarefas mais exigentes. Sua vida passou a se confundir com sua atividade, que ela mesma, numa entrevista, classificou jocosa e modestamente de “catadora de papel”. Hoje em dia, se tivesse vingado a ideia sempre recorrente da criação de uma cinemateca em Brasília, certamente esse anjo bom da cultura não seria dispensada de dirigir um dos setores de documentação e pesquisa da entidade. Enquanto a cinemateca não vem, Berê segue em frente realizando a sua cruzada pela coleta de dados preciosos para a história do cinema em Brasília, pela conservação de sua memória, sem jamais perder o alto sentido de sua militância cultural, transformando-se mesmo na mais confiável fonte de informação sobre a existência de filmes, localização de datas, nomes e eventos. É simplesmente espantosa a sua capacidade de empreender e levar a cabo tarefas que resultam sempre na preservação da memória do cinema, seja o de Brasília como o de outros centros produtores mais importantes, porque a sua especialidade e a sua dedicação vão todas para o cinema brasileiro, sem nunca dispensar de ser espectadora das mais assíduas do cinema estrangeiro de expressão universal.

Essa lavra benfazeja vem desde os anos de 1980, quando dá início a um trabalho paralelo como programadora junto ao circuito alternativo, municiando órgãos públicos e privados, escolas, universidades, cineclubes, associações e sindicatos. Em meio às tarefas que vai acumulando – e cedendo mais uma vez ao viés da militância – ainda encontra tempo para assumir a vice-presidência da ABD-DF, ajudando os realizadores locais a organizarem a entidade. Incansável, atende apelo do seu velho amigo Guido Araújo e vai para Salvador dar uma mão na preparação da Jornada Internacional de Cinema. No mesmo passo, é conselheira e jurada em várias edições do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e de outros tantos, como os do Sesc, da Eletronorte e de Fortaleza. Nomeada pelo ministro Aluísio Pimenta, integra a comissão encarregada de detectar as causas do fechamento das salas de cinema em Brasília. Igualmente, integra a comissão organizadora da 2ª Jornada Nacional de Cineclubes. É jurada de cinema e vídeo no 2º e 3º Prêmio Luís Estevão de Cultura, que contempla a atividade artística da capital. Preocupada com a sorte e o estado precário em que se encontra o que foi o melhor cinema da cidade, funda com um grupo de cinéfilos a SACI – Sociedade de Amigos do Cinema Brasília, produzindo exaustivo dossiê da situação da sala em seu amplo conjunto arquitetônico, obra de Oscar Niemeyer.

Seu trabalho de formiguinha é notado pelos mais sensíveis e finalmente surge uma oportunidade de contar com os meios e condições para realizar parte do seu sonho. É convocada pelo Ministério da Cultura e vai coordenar como pesquisadora as atividades da filmoteca da Fundação do Cinema Brasileiro, em Brasília, que tem sob seu controle a preservação e circulação de significativo acervo de filmes. Cria ali a seção Vá e Veja, que logo disponibiliza para consulta do público vasto material como livros, jornais, revistas, cadernos de pesquisa e de crítica, cinejornais e guias de filmes, contabilizando-se perto de oito mil sinopses e fichas técnicas de filmes nacionais e estrangeiros. A sua sala no térreo do Minc transforma-se em referência na Esplanada dos Ministérios, verdadeiro caminho de formigas dos cinéfilos e pesquisadores de todos os níveis, ávidos por informação e contato com o cinema. Formam-se filas para o atendimento, tal é a demanda. Sobretudo depois que se implanta a Sala Paulo Emílio, resultante de convênio entre a Embrafilme, o governo do Distrito Federal e o Minc, que passa a oferecer movimentadas exibições e debates de filmes com a presença de diretores do Rio, de São Paulo e de toda parte. Infelizmente, a insensibilidade e a incúria de administrações desastrosas inviabilizaram a iniciativa que tinha tudo para ser a semeadura de um processo irreversível para a criação de uma cinemateca em Brasília. Quando Berê, por sua vez, teve de afastar-se por motivos de saúde, já não havia nada a fazer ali.

Mas a pérola de sua persistente atuação no meio cinematográfico estava por vir. Mesmo se deslocando com esforço, trabalha intensamente para a Secretaria de Cultura do DF em cima de projeto que já tinha em mente, desde meados dos anos 90, garimpando nos arquivos da antiga Fundação Cultural, revirando pastas, documentos e acervos fotográficos, costurando datas e dando sentido aos números e relatórios, para produzir o que seria a obra de referência fundamental para a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Para isso associa-se ao jornalista Celso Araújo, trabalhando a quatro mãos, numa parceria das mais felizes. A obra – 30 Anos de Cinema e Festival – A História do FBCB, 1965-1997 –, um vistoso volume de quase 500 páginas, tem caráter exaustivo, recuperando em todos os seus aspectos a memória do festival com um sem número de dados e informações criteriosamente pesquisados e “tabulados” que vão desde a história da criação do certame até o mais mínimo detalhe de fichas técnicas, datas, sinopses, de todos os filmes apresentados, com o natural destaque para os premiados, bem como relação das mostras paralelas, composição de júris, perfis dos autores etc. Escrito no melhor estilo jornalístico, leve e claro, o texto é absolutamente fiel aos acontecimentos, oferecendo uma contextualização impecável com uma linha do tempo que gera um clima para toda a trajetória do evento. Dando lugar a um paralelo com o que se passava no país, notadamente no que diz respeito às crises políticas, à censura e aos movimentos sociais, se rebatendo e afetando a vida cultural. Por tudo isso se transformou em fonte permanente de consulta quando o assunto é o Festival e suas circunstâncias. Enfim, uma verdadeira “bíblia”.

Depois dessa empreitada e da coordenação e produção do catálogo realizado para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – intitulado O Olhar da Igreja, com o histórico dos concorrentes e laureados do prêmio anual da entidade, a nossa pesquisadora mal teve tempo de respirar e já estava às volta com a elaboração de um livro que lhe é muito caro, e para o qual contou com o apoio da editora da Universidade de Brasília. Veio à luz, em 2003, Luz, Câmera, Mesa e Ação: O Cinema Brasileiro na Cozinha, um precioso “álbum” de gastronomia em que astuciosamente mistura da forma mais criativa os seus dotes culinários com saborosos textos e títulos de notáveis filmes do cinema brasileiro, resultando em deliciosa e insopitável leitura, tanto para os interessados na boa cozinha como para os amantes do cinema. De quebra, e tecendo o tempo com mãos de fada, concluiu extenso levantamento e publica a árvore genealógica de sua família. A dimensão desses feitos se torna ainda mais incrível se considerarmos as condições enfrentadas por sua autora, a começar pelas suas condições físicas. Quem não conhecer pessoalmente Berê Bahia ou quem nunca a tenha visto nas suas aparições na mídia não adivinhará naquela mulher morena e ainda jovem, de baixa estatura e riso simpático e solidário, que percorre arrimada à sua bengala os corredores da burocracia de Brasília, a força e o carisma que a conduz. Não imagina que naquele corpo frágil e claudicante existam latentes tanta energia e possibilidades de ação. Com um prontuário de treze cirurgias realizadas para continuar se locomovendo, mesmo com dificuldade, Berê é uma espécie de Frida Kahlo, a sofrida mas extraordinária pintora mexicana, notória também pelas batalhas que travou contra a doença. Elas pertencem à mesma linhagem de criaturas capazes de ir ao último ponto na resistência e superação de suas restrições físicas.

E Berenice Rosalina da Silva está muito longe de entregar-se a uma forçada aposentadoria: nos últimos meses trabalhou diuturnamente e tem pronto, recém-saindo do forno de sua inquietação, um ciclópico projeto. São cerca de 300 filmes localizados e minuciosamente fichados, inclusive com os respectivos endereços onde podem ser encontrados, e que constituem um soberbo panorama de obras que se ocupam direta ou indiretamente de Brasília, seu surgimento e sua influência, e que pretende exibir em grande gala durante as comemorações dos 50 anos de existência da capital brasileira, a se realizarem em 2010. É a chamada mostra “de arromba”, só faltando o apoio e o aval dos poderes públicos e privados para se materializar. Berê está partindo com certa antecedência para a luta, no ritmo conhecido e aparentemente lento do seu passo tardo, mas na verdade numa cadência só sua e que de longe supera, como sempre superou, a pasmaceira e a má vontade da burocracia. Ela mais uma vez haverá de subverter a ordem “natural” das coisas e chegará a tempo, porque “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.


Vladimir Carvalho é cineasta, professor, pesquisador e artista plástico. Autor de documentários como O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra e O Engenho de Zé Lins. Publicou o livro Cinema Candango, além dos roteiros de alguns de seus filmes. Criou e mantém em Brasília a Fundação Cinememória.

Industrialização e Cinema de Estúdio no Brasil: a “Fábrica” Atlântida

Publicado em: 14 de setembro de 2011 por CPCB 4 Comentários

por João Luiz Vieira

"Carnaval Atlântida"

O desejo de um cinema vigoroso que almejasse construir, aos poucos, uma indústria audiovisual no país é um dos traços fortes da disseminação do modelo de produção do cinema narrativo operado com sucesso por Hollywood. Especialmente nos mercados periféricos sob influência direta da economia norte-americana, caso da América Latina após o fim da I Guerra Mundial. Ao longo da década de 1920 essa presença consolida-se como hegemônica em termos de distribuição e exibição da produção norte-americana feita por estúdios que legitimam e consagram seus nomes e suas marcas como, por exemplo, a Paramount, a Fox, a Metro-Goldwyn-Mayer.

Sempre me chamou a atenção a comparação da programação cinematográfica no Rio antes e depois da I Guerra quando folheamos as páginas de um jornal como O Correio da Manhã, por exemplo, numa data qualquer do início de 1914, e nos damos conta de uma diversidade maior na origem dos filmes exibidos, com predominância, inclusive, da produção européia, proveniente da França, Itália, Alemanha e países nórdicos, e também mostrando anúncios de nossas produções locais. Evidente que, com a Europa em guerra, essa produção cai e o cenário se apresenta favorável para a consolidação do filme norte-americano pela América Latina. O mesmo jornal, numa outra data qualquer do início dos anos 20, surpreende ao exibir, majoritariamente, anúncios de filmes norte-americanos em cinemas que mantêm contratos de exibição exclusivos com os principais estúdios de Hollywood, associando o nome de uma sala tradicional com o nome e a marca do estúdio produtor.

Mal se inaugura o primeiro “palácio de cinema” do Rio de Janeiro, o Cine Capitólio, em 1925—no trecho do centro da cidade que, devido à grande e posterior concentração de salas de cinema ali existentes, ficaria conhecido como Cinelândia nas décadas seguintes—já aparecem a marca e o logotipo da Paramount por cima do letreiro Capitólio, associando no público, de forma inseparável, o meio de expressão “cinema” com “cinema norte-americano” e, mais especificamente, um grande estúdio produtor. A prática reproduzia aqui os mesmos mecanismos de expansão e controle verticais da atividade conforme exercida na matriz norte-americana e posteriormente denunciada em campanhas antitruste.

Na historiografia clássica do cinema brasileiro, quando nos referimos a “cinema de estúdio”, apesar de várias experiências país afora, em geral são três os nomes que, imediatamente, vêm à tona: a Cinédia—exemplo inaugural que se costuma considerar como o modelo de um desejo de estúdio de verdade, especialmente ao longo dos anos 30 e início dos anos 40 — seguida da Atlântida, na segunda metade dos anos 40 e ao longo dos anos 50 e, finalmente, da Vera Cruz, no final da década de 40 e até a primeira metade dos anos 50.[1]

Ainda dentro de uma concepção e desejo de implantação e desenvolvimento de uma indústria de cinema no Brasil, também seguindo o modelo bem consolidado do cinema norte-americano, a construção de um mercado consumidor no país foi alavancado pelo que Christian Metz chamou de “terceira indústria”, ou seja, a mídia impressa, muito bem assentada por publicações especiais, com destaque absoluto para a revista Cinearte, editada ininterruptamente durante duas décadas a partir de 1926. Considerada derivativa da similar norte-americana Photoplay, tanto em seu aspecto gráfico quanto editorial, seu primeiro número se autoproclamava “um mediador natural entre o mercado brasileiro e o produtor norte-americano”, exaltando e promovendo a universalidade do modelo de produção de Hollywood, apoiado em duas estruturas fortes e dominantes naquele cinema: o estrelismo (star system) e o cinema de estúdio.

O culto ao estrelismo —base de venda dessas revistas mundo afora — foi adaptado, com maior ou menor sucesso, ao cinema nacional, e em suas páginas encontramos generoso material para empreender diversos estudos sobre o culto às estrelas (não só do cinema, mas também do rádio) na cultura audiovisual brasileira. E, também de acordo com o que aqui chegava da produção dominante norte-americana, celebrando um mal disfarçado racismo ao exaltar a hegemonia de um padrão de beleza branco onde fotogenia era sinônimo de ambientes luxuosos e higiênicos por onde circulavam, de preferência, corpos jovens e saudáveis. A revista sugeriu, inúmeras vezes, que a criação de um bom cinema no Brasil deveria ser um ato de purificação de nossa realidade social, através de uma cuidadosa seleção do que deveria ou não ser mostrado nas telas, enfatizando uma noção de progresso, de conquistas da engenharia nacional, de uma inseparável relação entre as belezas naturais de nossas paisagens geográficas e a paisagem social, branca e, por isso mesmo, agradáveis de serem vistas e fotografadas.

Tal esforço na construção de uma imagem nacional só seria melhor conseguido por meio de um modelo assentado no controle maior que a produção em estúdio garantia. Um cinema de estúdio do tipo norte-americano, com interiores bem decorados e habitados por gente agradável. A Cinédia, em diversos filmes, colocou esses preceitos em pauta e, ao longo da década de 30, consolidou-se como o centro de produção mais importante do Brasil. Bonequinha de Seda (1936), dirigido por Oduvaldo Vianna, pode ser considerado paradigma de quase todas essas intenções ao materializar alguns dos padrões de qualidade discutidos e defendidos durante anos por Adhemar Gonzaga na páginas de Cinearte. Especialmente a cuidadosa elaboração de uma mise-en-scène onde cenografia, vestuário, iluminação, movimentos de câmera, interpretações e enquadramentos foram orquestrados na busca de um visual bem mais elaborado e inédito até então no cinema brasileiro.[2]

A consciência de um momento histórico marcado pela defesa de uma indústria nacional tomou conta de setores estratégicos da sociedade brasileira durante os anos inaugurais do primeiro governo de Getúlio Vargas. A experiência da Cinédia vinha ao encontro do início da intervenção do estado nas atividades cinematográficas. Dando mais ênfase à defesa de uma indústria nacional, em sintonia com o desenvolvimento e implantação de uma série de reformas de caráter social, administrativo e político—como, por exemplo, a criação de organismos como o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (1930), do Ministério da Educação e Saúde Pública (1932), entre outros, e da consolidação das leis trabalhistas —, Getúlio dava respostas governamentais urgentes e imediatas a certos problemas crônicos enfrentados pela administração e economia do país. Em pauta, acima de tudo, a discussão clara do papel do cinema visto como meio estratégico para a criação de uma nova imagem do Brasil — mola propulsora da modernidade, levando uma visão positiva do país, moldando mentes por meio de imagens.

Segundo a crença vigente nos poderes pedagógicos da imagem em movimento que, num horizonte com traços ainda positivistas, resolveria questões críticas como o analfabetismo, acreditava-se que o cinema seria o meio mais poderoso de valorizar a natureza e a cultura brasileiras e levar a informação pelo país afora, com eficácia e alcance até então inimagináveis, ilustrando a massa de incultos e iletrados. Nas palavras de Roquete Pinto, “nosso cinema tem que informar, cada vez mais, o Brasil aos brasileiros”. O resultado prático mais visível e duradouro desse desejo foi a criação, em 1936, do INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo.[3] A partir dessa iniciativa, intensos debates tensionaram posições antagônicas em torno do que seria, para os propósitos pedagógicos do governo, um bom cinema—aquele de viés meramente educativo—e um mau cinema, ou seja, todo o cinema de ficção, comercial. Conciliar propósitos em princípio antagônicos dentro dessa visão estreita que opõe educação e entretenimento, ao mesmo tempo em que preconiza-se “informar o Brasil aos brasileiros” orienta, em boa parte, certos dilemas encontrados na produção da Cinédia e, com certeza, menos de cinco anos depois, também na gestação do projeto da Atlântida.

Constituída por assembléia geral em 13 de outubro de 1941, a Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A. foi articulada pelos idealizadores Moacyr Fenelon, Alinor Azevedo, José Carlos e Paulo Burle, Nelson Schultz e Arnaldo de Faria. Em palavras que ecoam ostensivamente ideais construtivos, em sintonia com a ideologia governamental preconizada na década anterior, a Atlântida dizia a que vinha, destacando um papel social mais elevado e educador para a arte, consciente do poder de influência e penetração do cinema. Segundo as palavras de José Carlos Burle, no que parece ter sido um discurso (proferido nessa  Assembléia Geral da Associação Comercial do Rio de Janeiro de 13 de outubro de 1941, onde os estatutos da empresa foram apresentados e aprovados?), ele afirmava que

“…na hora presente, mais do que qualquer outra instituição, as nações reúnem e exaltam os seus elementos nacionalizantes mais expressivos. Não precisaríamos aqui, numa simples explanação de nossos propósitos, realçar todos os fatores que fazem do cinema um desses fortes elementos. Lembramos, porém, que a arte completa o nível de cultura superior e constitui com a ciência, a política e a religião, todo o patrimônio moral e intelectual de uma época, de um povo. O cinema, arte resultante de todas as artes e com maior poder dentre todas, para objetivar e divulgar, adquiriu métodos próprios de expressão, fez-se arte independente e, por esse grande poder de penetrar e persuadir as mais diversas multidões, tornou-se indústria de vulto universal, órgão essencial de educação coletiva.

A finalidade da Atlântida é a produção de filmes cinematográficos — documentários, noticiosos, artístico-culturais, de longa e pequena metragem, desenhos animados, dublagem de produções estrangeiras e atividades afins —implantando uma indústria e uma arte de cinema no Brasil.

A isso nos propomos, levados pelo que vimos nos referindo e pelo grande ideal de levantarmos as paredes dessa grandiosa construção que será o cinema brasileiro, cujos alicerces já estão lançados—o nosso meio social.

A criação da Atlântida—Empresa Cinematográfica S/A, de caráter absolutamente brasileiro, é, sem dúvida, o melhor emprego de capital na atualidade e realização das mais necessárias, quando o Brasil, procurando bastar-se a si próprio, vive a fase definitiva de sua emancipação econômica.”[4]

Também tradicionalmente costuma-se, numa visão sempre apressada e simplista, agrupar e classificar a produção da Atlântida em duas fases distintas e, aparentemente, inconciliáveis, ou seja, a primeira, desde a fundação da empresa em 1941 estendendo-se até 1947; e uma segunda fase, a partir de 1947, ano que marca uma radical mudança de poder na empresa, que passa então a ter seu controle acionário nas mãos do maior exibidor cinematográfico do país, o poderoso Luiz Severiano Ribeiro. De acordo com as palavras de Burle acima, as “nobres” intenções formuladas por esse grupo inicial foram materializadas em projetos cinematográficos de viés crítico-social como Moleque Tião (1943), dirigido pelo próprio e roteirizado por Alinor Azevedo, este o articulador talvez mais comprometido com um cinema de “consciência social”; ou ainda filmes com pretensões artísticas ambiciosas, como É Proibido Sonhar (também de 43), dirigido por Fenelon e a comédia Romance de um Mordedor (1945), adaptação literária de Galeão Coutinho, dirigida por Burle.[5]

Mas esse grupo diretor da Atlântida também havia experimentado o sucesso popular da união entre cinema e música popular tão bem conseguido pelas produções da Cinédia na década anterior e de realizadores como Wallace Downey, além do próprio Fenelon, sempre ligado a questões de sonorização e, por isso mesmo, atento ao papel sedutor que a música desempenhava junto ao público. Portanto, além dessas produções mais artísticas e dos cinejornais presentes desde o início da produção (e pelos quais, além das chanchadas, a marca Atlântida permaneceria para sempre no imaginário dos espectadores), a realização de comédias musicais também foi experimentada nesses primeiros anos, em títulos às vezes premonitórios e visionários como Tristezas Não Pagam Dívidas (1944), sob a direção de Burle, ou Não Adianta Chorar (1945), de um estreante Watson Macedo, com Oscarito, Grande Otelo e um elenco onde se destacavam números musicais defendidos pelas irmãs Batista, Emilinha Borba, Marion, Sílvio Caldas, Alvarenga e Ranchinho, entre vários outros nomes de grande popularidade no rádio.

Nesses primeiros anos, a ideia de um cinema de estúdio significava, na Atlântida, espaços mais ou menos improvisados localizados num barracão situado à rua Visconde do Rio Branco, centro do Rio. A direção da empresa, entretanto, localizava-se na sede do Jornal do Brasil, cujo endereço (Avenida Rio Branco, 51), dono e acionista, o Conde Pereira Carneiro, imprimiam credibilidade ao projeto. Técnicos da competência de um Edgar Brasil, Cajado Filho e Waldemar Noya são contratados, e a produção vai se equilibrando entre os cinejornais, os filmes tidos como “artísticos” e as comédias musicais. Com a entrada de Severiano Ribeiro nesse quadro, em outubro de 1947, assumindo o controle da empresa como seu principal acionista, esse equilíbrio entre o risco de uma produção mais ambiciosa e a certeza de retorno financeiro prometido pelas chanchadas vai de certa forma continuar, mas com a balança pendendo bem mais para a segurança garantida pelas comédias musicais.  Afinal, não há com o que se surpreender, uma vez que Ribeiro era um capitalista investidor e o lucro máximo, seu horizonte natural.

Ainda assim, entre retumbantes êxitos de bilheteria como Carnaval no Fogo (1949), e Aviso aos Navegantes (1951), ambos de Watson Macedo, havia espaço para produções como as adaptações literárias Terra Violenta (1948) de Eddie Bernoudy (do livro de Jorge Amado, Terras do Sem Fim), Escrava Isaura (1949) de Eurides Ramos (do original de Bernardo Guimarães) ou o pioneiro melodrama racial Também Somos Irmãos (1949) de José Carlos Burle. Na década de 50, entre chanchadas e comédias, incluindo adaptações de peças como O Golpe (1955), Papai Fanfarrão (1956) e Cupim (1959), todas dirigidas por Carlos Manga, há que se destacar, sempre, produções de fôlego como A Sombra da Outra (1950), de Macedo, Areias Ardentes (1951), de J.B.Tanko, o noir Amei um Bicheiro (1952) de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, além de uma co-produção com a Alemanha, Paixão nas Selvas (1955), dirigida por Franz Eichhorn.

A estratégica entrada de Severiano Ribeiro como sócio majoritário da Atlântida não acontece por acaso e responde, diretamente, a seus interesses como, primordialmente, exibidor (e não produtor) de poder que era. Seus objetivos maiores, associados aos possíveis lucros a serem gerados pela produção de filmes, vinham ao encontro de uma situação que lhe era favorável, permitida pela obrigatoriedade de reserva de mercado para filmes brasileiros, o célebre decreto nº 20.493 de 24 de janeiro de 1946. Tal dispositivo determinava que os cinemas teriam que exibir, anualmente, pelo menos três filmes nacionais. Após o autoritarismo do Estado Novo (1937-1945), o presidente Eurico Gaspar Dutra manteve o interesse estratégico pelo cinema inaugurado por Getúlio Vargas. Ribeiro, ao cumprir com total empenho esse decreto, passava a produzir para os seus próprios cinemas, garantindo assim, todos os lucros de uma cadeia onde ele também era o distribuidor. Com a montagem de seu próprio laboratório de revelação, a Cinegráfica São Luiz, uma cadeia econômica de produção se fechava de forma inédita no cinema brasileiro.

Com muitos cinemas espalhados pelo país, o grupo garantiu uma visibilidade também até então inédita para o filme nacional. Objetivando o lucro máximo, os investimentos na produção eram mínimos—agora localizados na Tijuca, na rua Haddock Lobo, os “estúdios” eram bem diferentes do que um jovem Carlos Manga, fascinado pelo cinema, imaginava a partir do glamour que ele idealizava e lia sobre a atividade cinematográfica. Dá o que pensar afirmações contrastantes onde, de um lado, o patrão Ribeiro afirmava que Oscarito era a sua “mina de ouro” e do outro, a do próprio comediante que, em diversas entrevistas, repetia que “nunca enriqueceu com o cinema.”

Equipes reduzidas ao mínimo necessário, atores e atrizes que já deveriam chegar para as filmagens alimentados e vestidos com suas próprias roupas, equipamentos técnicos reciclados, tudo contribuía para um esquema de produção de baixo orçamento, rápido e dinâmico. Tal estratégia de produção também tinha eco nas experiências anteriores de Moacyr Fenelon, que abandonou a Atlântida após a entrada de Severiano Ribeiro. Já na Sonofilms, nos anos 30, Fenelon era um nome reconhecido no meio exatamente pela habilidade em saber fazer filmes destinados ao grande público a partir de estratégias de baixo custo, incluindo aqui esse perfil posteriormente mantido pela Atlântida, que combinava comédias musicais com adaptações de textos teatrais leves.

A garantia de exibição—ainda que limitada a três ou quatro títulos por ano, média da produção da Atlântida entre 1947 e 1962—resolveu, durante pelo menos duas décadas, um eterno “calcanhar de Aquiles” da atividade cinematográfica brasileira que se estende até os dias de hoje. A experiência da Atlântida, em termos de pensamento industrial, materializou um conhecimento prático das condições reais e possíveis de um mercado periférico, especialmente se comparadas a outras tentativas de implantação e defesa de um cinema mais sofisticado e ambicioso. A consciência e demonstração desse conhecimento e dessa prática estão presentes tematicamente e de forma reflexiva num filme emblemático de José Carlos Burle, realizado em 1952, chamado Carnaval Atlântida. Mas isso já é outra história, contada inúmeras vezes em outros lugares.[6]



[1] Há outras experiências de maior ou menor presença e continuidade, como, por exemplo, a Phebo Brasil Film, a Sonofilms, a Brasil Vita Filmes, a Cia. Americana ou a Maristela. Entretanto, a Cinédia foi realmente a primeira experiência que permitiu essa comparação com o modelo matricial norte-americano. Entre outras características que a aproximam desse ideal de “cinema de estúdio” estão a construção de estrutura arquitetônica especial que lembra galpões de fábricas, a importação de equipamentos especializados de registro e iluminação, um regime de trabalho onde atores e atrizes possuem exclusividade, entre outros.

[2] Para uma análise mais detalhada do significado desse filme para a Cinédia e para o desenvolvimento de um visual modernista no cinema brasileiro de acordo com os preceitos ditados por Cinearte, ver João Luiz Vieira, “Cinema brasileiro art-déco”, in BUTRUCE, Débora,  Hipólito Collomb, Lazlo Meitner, Ruy Costa: Cenógrafos de Cinema (Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2007), 26-31.

[3] Para uma visão mais completa do papel do cinema educativo no Brasil a partir da criação do INCE, ver o livro de Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as Imagens do Brasil (São Paulo: UNESP, 2004), bem como a dissertação de mestrado de Fernanda Caraline de Almeida Carvalhal, Luz, Câmera, Educação: o INCE e a Formação da Cultura Áudio-imagética Escolar. Rio de Janeiro: UNESA, 2008. 311p.

[4] Conforme transcrito das páginas 122-123 da recente biografia de Luiz Severiano Ribeiro, O Rei do Cinema, de Toninho Vaz (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008) que traz, em seu caderno iconográfico, uma imagem do original do documento intitulado Estatutos da Atlântida.

[5] Para uma leitura definitiva do papel seminal de Alinor Azevedo não só durante os anos da Atlântida, ver a excelente (e inédita) dissertação de mestrado de Luís Alberto Rocha Melo, intitulada Argumento e Roteiro: O Escritor de Cinema Alinor Azevedo (Niterói: IACS/PPGCOM, 2006), 349 p.

[6] Ver, por exemplo, três leituras convergentes e complementares desse filme emblemático: João Luiz Vieira, “A chanchada e o cinema carioca (1930-1955)”. In: RAMOS, Fernão (Org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 153-154; Robert Stam e João Luiz Vieira, “Parody and Marginality”. In ALVARADO, Manuel e John O. Thompson (Orgs. ) The Media Reader. Londres, BFI Publishing, 1990. p. 82-104; Arthur Autran, “A questão do studio system no pensamento industrial cinematográfico brasileiro”. Cadernos da Pós-Graduação – Edição Especial Cinema – Fotografia, Campinas, v. III, n. 3, 2006.  p. 15-29.

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João Luiz Vieira é Professor Associado do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense e membro do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro desde 1977, tendo sido Presidente do CPCB entre 1988 e 1993.